Resolução CNMP nº 287 de 12 de Março de 2024
Dispõe sobre a atuação integrada do Ministério Público para a efetiva defesa e proteção das crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência, conforme Lei nº 13.431, de 4 de abril de 2017, e Lei nº 14.344, de 24 de maio de 2022.
Publicado por Conselho Nacional do Ministério Público
Brasília-DF, 12 de março de 2024.
Capítulo I
Esta Resolução estabelece diretrizes sobre a atuação integrada do Ministério Público para a efetiva defesa e proteção das crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência.
Os membros do Ministério Público que em sua atuação se depararem com situação de qualquer forma de violência contra criança e adolescente, direta ou indireta, notadamente em matéria criminal, violência doméstica, exploração do trabalho infantil, família e infância e adolescência, devem se articular com o objetivo de melhor atender às necessidades das crianças e adolescentes, evitando-se a revitimização e violência institucional, assegurando a proteção integral.
Devem ser pactuados fluxos para troca de informações entre os órgãos de proteção e os membros com atribuição nas áreas criminal, trabalhista, de violência doméstica, da infância ou de família, e, ainda, internamente no âmbito das Promotorias de Justiça com estas atribuições, visando maior celeridade às medidas administrativas e judiciais necessárias, em prol de crianças, adolescentes e suas famílias, a qualquer momento.
Para que não ocorra revitimização e violência institucional, e visando a uma atuação transversal coerente, o membro do Ministério Público que primeiro tiver ciência de criança ou adolescente em situação de violência deve comunicar formalmente aos demais acerca das medidas já adotadas, nos termos do art. 9º, V e VI, desta Resolução, levando-se em consideração as necessidades das vítimas e a divisão das atribuições de cada órgão ministerial.
Capítulo II
Os membros do Ministério Público, atuando conjuntamente, no âmbito de suas atribuições, e em observância ao art. 3º do Decreto nº 9.603, de 10 de dezembro de 2018, e ao art. 5º da Lei nº 14.344/2022, deverão:
empreender esforços para exigir do Poder Público a implementação de C ONSELHO N ACIONAL DO M INISTÉRIO P ÚBLICO programas, serviços e/ou outros equipamentos que proporcionem atenção e atendimento integral e interinstitucional às crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência, compostos por equipes multidisciplinares especializadas, na forma do art. 2º, parágrafo único; art. 16, parágrafo único, art. 17, art. 18, art. 19, art. 20 e art. 23, todos da Lei nº 13.431/2017;
atuar para que sejam elaborados, instituídos e divulgados fluxos intersetoriais e protocolos de atendimento para as diversas modalidades de violência previstas na Lei nº. 13.431/2017, inclusive por ocasião de sua revelação espontânea, nos moldes do previsto no art. 4º, §2º do citado diploma legal, bem como no art. 13, §2º, da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990, e na Resolução nº 235/2023 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA);
no âmbito da saúde: se a atenção à saúde está sendo realizada por equipe multiprofissional do Sistema Único de Saúde (SUS), nos diversos níveis de atenção, englobado o acolhimento, o atendimento, o tratamento especializado, a notificação e o seguimento da rede (art. 10 do Decreto nº 9.603/2018), em consonância, dentre outras normas e protocolos, com a Lei nº 12.845, de 1º de agosto de 2013, o Decreto nº 7.958, de 13 de março de 2013 e a Portaria Interministerial nº 288, de 25 de março 2015;
no âmbito da assistência social: se os serviços, programas, projetos e benefícios estão organizados para prevenção das situações de vulnerabilidades, riscos e violações de direitos de crianças e de adolescentes e de suas famílias no âmbito da proteção social básica e especial (art. 12 do Decreto nº 9.603/2018) e se estão sendo observados os procedimentos descritos no art. 19 da Lei nº 13.431/2017;
no âmbito da educação: se estão sendo promovidas ações integradas visando à identificação da violência e à acolhida, bem como ações educativas preventivas, nos termos dos arts. 70-A e 70-B da Lei nº 8069/1990, art. 4º, § 2º, da Lei nº 13.431/2017, art. 11 do Decreto 9.603/2018 e art. 12, IX, e 26, § 9º, da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996;
no âmbito da segurança pública: se no atendimento de crianças e adolescentes em situação de violência estão sendo observados os arts. 20 a 22 da Lei nº 13.431/2017, o art. 13 do Decreto nº 9.603/2018, os arts. 11 a 14 da Lei nº 14.344/2022 e os arts. 10 a 12-C da Lei nº 11.340/2006;
no âmbito dos conselhos de direitos: se estão sendo instituídos e C ONSELHO N ACIONAL DO M INISTÉRIO P ÚBLICO efetivamente operando os comitês municipais colegiados da rede de cuidado e de proteção social das crianças e dos adolescentes vítimas ou testemunhas de violência definidos no art. 9º, I, do Decreto 9.603/2018 e na Resolução nº 235, de 12 de maio de 2023, do CONANDA, acompanhando as suas atividades;
no âmbito do conselho tutelar: se o órgão está inserido nos fluxos pactuados com os sistemas de justiça, segurança pública, assistência social, educação e saúde visando às ações articuladas, coordenadas e efetivas voltadas ao acolhimento e ao atendimento integral às vítimas de violência, conforme art. 14 da Lei nº 13431/2017, art. 14 do Decreto nº 9.603/18 e atribuições estabelecidas pelo art. 136 da Lei nº 8.069/1990;
no âmbito do sistema de justiça: se implementado o depoimento especial na comarca, com observância dos arts. 8º, 11 e 12 da Lei nº 13.431/2017 e arts. 22 a 26 do Decreto nº 9.603/2018; e se os procedimentos investigatórios e os processos decorrentes da situação de violência em tramitação nas esferas criminal, trabalhista, da violência doméstica, família, infância e adolescência e cível, tramitam com a celeridade e prioridade que lhes são devidas, observado o disposto nos arts. 5º, VIII e 14, §1º, V e VI, da Lei nº 13.431/2017; arts. 4º, caput e parágrafo único, alínea "b" e 100, parágrafo único, II e VI, da Lei nº 8.069/1990 e art. 227, caput, da Constituição Federal;
zelar para que a escuta especializada, realizada no âmbito da rede local de proteção à criança e ao adolescente, seja efetuada por profissionais qualificados e com formação especializada, observadas as diretrizes legais, sua finalidade protetiva e de participação da criança e adolescente, garantindo-se o encaminhamento da vítima ou testemunha para os programas e serviços necessários para a proteção integral;
fomentar a criação dos mecanismos de informação, referência, contrarreferência e monitoramento previstos no art. 14, §1º, III, da Lei nº 13.431/2017, devendo ser definida uma sistemática que, de um lado, permita que os atendimentos prestados sejam registrados, na forma do art. 28 do Decreto nº 9.603/2018 e normas correlatas, com o compartilhamento de informações relevantes entre os diversos integrantes da rede de proteção e o Sistema de Justiça e, de outro, assegure o sigilo em relação a terceiros;
cuidar para que haja permanente monitoramento de risco pela rede de proteção, atentando-se às situações de ameaça, intimidação ou outras interferências externas que possam comprometer a integridade física e/ou psíquica das crianças e C ONSELHO N ACIONAL DO M INISTÉRIO P ÚBLICO adolescentes, bem como à vulnerabilidade indireta de outros membros de sua família, inclusive para inserção em programas de proteção às vítimas e testemunhas ameaçadas, ou outras possíveis providências, tais como as contempladas no art. 21 da Lei nº 13.431/2017 e na Lei nº 14.344/2022;
fomentar e fiscalizar a oferta de formação interdisciplinar continuada, preferencialmente conjunta, aos profissionais do sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência e suas respectivas famílias.
Os membros do Ministério Público devem assegurar a proteção e a não revitimização das crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência, nos casos em que a revelação espontânea se dê no âmbito do Ministério Público.
A escuta da revelação espontânea deve se limitar ao que for livremente narrado pela criança ou adolescente, em local adequado e que seja respeitada sua autonomia e privacidade.
Na hipótese de revelação espontânea da violência, a criança e o adolescente serão encaminhados, quando necessário, para confirmação dos fatos por meio da escuta especializada ou do depoimento especial, conforme dispõe o art. 4º, § 1º, da Lei nº 13.431/2017, salvo em caso de intervenções de saúde.
Em respeito à revelação espontânea, o registro do ato deverá ser realizado apenas ao final da narrativa livre, para fins de notificação e encaminhamentos nos termos do parágrafo anterior.
O membro do Ministério Público com atribuição criminal, infracional ou cível deve, sempre que necessário o depoimento especial e com brevidade, promover o ajuizamento de ação cautelar de produção antecipada de provas em ação própria ou incidental na denúncia ou representação, ou na petição inicial, notadamente nas hipóteses obrigatórias previstas no art. 11, §1º, I e II, da Lei nº 13.431/2017, como forma de evitar a revitimização, preservar a qualidade da prova e prevenir o prejuízo causado pela ação do tempo ou de contaminações à memória.
Quando realizado o depoimento especial, em sede de produção antecipada de prova em ação própria, o membro do Ministério Público deverá zelar para que este passe a integrar, com brevidade, o procedimento que serviu de fundamento para o ajuizamento da demanda cautelar, de forma a priorizar a adoção das medidas cabíveis, atentando para o resguardo do sigilo do seu conteúdo. C ONSELHO N ACIONAL DO M INISTÉRIO P ÚBLICO
Havendo necessidade de oitiva da criança ou do adolescente vítima ou testemunha sobre a violência perante a autoridade judiciária, o membro do Ministério Público deverá velar para que ela se dê na forma do depoimento especial, salvo na hipótese prevista no art. 12, §1º, da Lei nº 13.431/2017.
O membro do Ministério Público deve zelar pela cientificação do investigado, oportunizando-lhe a constituição de advogado ou nomeação de defensor pelo juízo, caso não constitua, visando a assegurar o necessário contraditório real na produção antecipada de prova.
No âmbito dos procedimentos investigatórios exclusivos do Ministério Público, de maneira excepcional, inexistindo elementos suficientes para a propositura de ação cautelar de produção de prova e sendo imprescindível a oitiva da vítima ou testemunha de violência, esta deve ser realizada por meio de depoimento especial, ressalvada a exceção prevista no art. 12, §1º, da Lei nº 13.431/2017.
O membro do Ministério Público deve cuidar para que a oitiva em juízo da criança e/ou adolescente vítima ou testemunha de violência seja realizada em sala de depoimento especial, por meio de profissional especializado, na forma do art. 11 e art. 12 da Lei nº 13.431/2017, zelando para que o depoimento não ocorra diretamente em sala de audiência pelo formato tradicional.
O membro do Ministério Público deve velar para que a oitiva em juízo da criança e/ou adolescente vítima ou testemunha de violência pelo formato tradicional, por força do disposto no art. 12, §1º, da Lei nº 13.431/2017, somente ocorra em situações restritas, a seu pedido, após prestados os esclarecimentos devidos pela equipe técnica do juízo responsável pela realização do depoimento especial.
Em caso de oitiva diretamente em juízo, devem ser tomadas todas as cautelas relativas à preparação prévia da vítima ou testemunha e seu resguardo quanto à presença do acusado, situações de ameaça, intimidação ou outras influências externas, assim como do comportamento inadequado dos atuantes no processo, dentre outros direitos e diretrizes relacionadas no art. 5º e art. 14, da Lei nº. 13.431/2017.
Compete ao membro do Ministério Público zelar para que a criança ou adolescente vítima ou testemunha de violência possa emitir seus desejos e opiniões livremente, inclusive o de se manter em silêncio, após devidamente esclarecida sobre os procedimentos e seus direitos. C ONSELHO N ACIONAL DO M INISTÉRIO P ÚBLICO
Quando o depoimento especial não for recomendado pela equipe técnica responsável, o membro do Ministério Público deve fiscalizar a efetiva avaliação preliminar por parte de técnico capacitado e seus fundamentos, com vistas a apontar qual o procedimento mais adequado para ser realizado no caso concreto.
Se a recomendação pela não realização do depoimento especial for pautada na recusa, livre e informada, por parte da criança ou adolescente em depor, o membro do Ministério Público deve zelar para que seja respeitado esse direito, nos termos do art. 5º, VI, da Lei nº 13.431/2017 e art. 12 da Convenção sobre os Direitos da Criança.
Em sendo realizado o depoimento especial, o membro do Ministério Público deve atentar para a plena observância do disposto no art. 5º, XV, da Lei nº 13.431/2017 em relação às crianças ou adolescentes com deficiência ou que falem idioma diverso do português, e o art. 17 do Decreto nº 9.603/2018, no tocante às crianças e adolescentes pertencentes a povos e comunidades tradicionais.
Deve o membro do Ministério Público, em qualquer hipótese, zelar para que a vítima não tenha contato, ainda que visual, com o autor ou acusado ou com qualquer outra pessoa que represente ameaça, coação ou constrangimento.
Na eventualidade de ausência de estrutura na comarca para a realização do depoimento especial nos moldes do preconizado pelo art. 11 e art. 12, da Lei nº 13.431/2017, o membro do Ministério Público deve observar as orientações da Corregedoria-Geral e da Procuradoria-Geral de Justiça da unidade ministerial.
Quando do fato que resultou a violência houver repercussão em mais de uma atribuição do Ministério Público, o depoimento especial deve ocorrer, preferencialmente, no âmbito criminal.
: Havendo necessidade de depoimento especial em Vara diversa da criminal, o membro do Ministério Público deve verificar a possibilidade de aproveitar a prova emprestada produzida ou a ser produzida no juízo criminal, nos termos do art. 2º desta Resolução, evitando-se a repetição do depoimento e de eventual perícia sobre os mesmos fatos, bem como a revitimização, resguardado o sigilo (arts. 11, caput, e 12, § 5º, da Lei nº 13.431/2017).
O membro do Ministério Público garantirá a proteção das vítimas por meio de requerimentos judiciais de aplicação de medidas protetivas de urgência ou sua revisão, de modo a preservar o direito das crianças e adolescentes à convivência C ONSELHO N ACIONAL DO M INISTÉRIO P ÚBLICO familiar e comunitária, inclusive priorizando-se o afastamento do agressor em detrimento do afastamento da criança ou do adolescente do lar (art. 20 e art. 21 da Lei nº 14.344/2022, art. 21, II, da Lei nº 13.431/2017, art. 130 da Lei nº 8.069/1990 e art. 319, II e III, do CPP).
O membro do Ministério Público, ao analisar as medidas protetivas de urgência, deve atentar para a vulnerabilidade da família, nos casos em que o agressor for também o provedor, a fim de pleitear as prestações de alimentos, nos termos do art. 130 da Lei nº 8.069/1990 e art. 20, VII, da Lei nº 14.344/2022.
O membro do Ministério Público deverá zelar para que o responsável legal pela criança ou pelo adolescente vítima ou testemunha de violência doméstica e familiar, desde que não seja o autor das agressões, seja notificado dos atos processuais relativos ao agressor, especialmente dos pertinentes às medidas protetivas aplicadas ou revisadas (art. 18 da Lei nº 14.344/2022).
Capítulo III
Recomenda-se, ainda, às unidades do Ministério Público, por meio das Procuradorias-Gerais de Justiça:
a realização de gestões junto aos Tribunais de Justiça para criação das Varas e Câmaras Criminais especializadas, ainda que sem competência exclusiva, em crimes contra crianças e adolescentes, conforme art. 23 da Lei nº 13.431/2017;
a realização de gestões junto às Secretarias Estaduais de Segurança Pública, para criação de Delegacias de Polícia especializadas em apurar crimes contra crianças e adolescentes, ainda que sem competência exclusiva, assim como para adequação de espaços e protocolos de atendimento por parte dos Institutos de Criminalística e/ou Medicina Legal, como forma de evitar a revitimização ou a violência institucional quando da realização de exames de corpo de delito;
a realização de cursos de aperfeiçoamento funcional para os Promotores e Procuradores de Justiça com atuação nas áreas da família, infância e juventude, violência doméstica e criminal sobre as Leis nº 13.431/2017 e nº 14.344/2022 e normas correlatas, com previsão no planejamento estratégico institucional, bem como às equipes técnicas a serviço da instituição, a fim de que possam prestar assessoria aos membros do C ONSELHO N ACIONAL DO M INISTÉRIO P ÚBLICO Ministério Público;
o registro em seu sistema de dados dos casos de violência doméstica e familiar contra a criança e o adolescente, observada a taxonomia vigente;
seja viabilizado o compartilhamento de informações, internamente entre as Promotorias de Justiça, nos sistemas informatizados geridos no âmbito do respectivo Ministério Público;
sejam assegurados fluxos entre as Promotorias de Justiça, inclusive pelos membros com atribuição criminal e infracional, para recebimento e adoção de providências em relação a notícias de fato ou representação, em especial relativas à medida de proteção e à ação cautelar de antecipação de produção de prova, nas causas que envolvam violência contra a criança e o adolescente, durante expediente regular e no plantão.
PAULO GUSTAVO GONET BRANCO Presidente do Conselho Nacional do Ministério Público