Resolução CNMP nº 230 de 08 de Junho de 2021
Disciplina a atuação do Ministério Público brasileiro junto aos povos e comunidades tradicionais.
O CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO , no exercício da competência fixada no artigo 130-A, §2º, I, da Constituição Federal e com fundamento nos artigos 147 e seguintes, e 157 de seu Regimento Interno, em conformidade com a decisão plenária proferida na 8ª Sessão Ordinária, realizada em 25 de maio de 2021, nos autos da Proposição n.º 1.00128/2020-70; Considerando que os povos e comunidades tradicionais são grupos culturalmente diferenciados e que se se reconhecem como tais, além de possuírem formas próprias de organização social; Considerando que os povos e comunidades tradicionais ocupam e usam territórios e recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ancestral e econômica, utilizando conhecimentos, inovações e práticas gerados e transmitidos pela tradição; Considerando que tais grupos possuem na territorialidade um fator de identificação, defesa e força, calcado no uso comum da terra e no modo tradicional de ocupação, o qual não se constitui pelo fator temporal, mas sim por uma relação singular com a terra, em contraponto a formas hegemônicas de apropriação; Considerando que a Constituição Federal destaca o pluralismo político (art. 1º, V) como fundamento da República e não hierarquiza os modos de vida dos grupos sociais que compõem a sociedade brasileira, o que enseja o cenário para a efetivação do diálogo intercultural; Considerando que o diálogo intercultural pressupõe o respeito e o reconhecimento jurídico de cosmovisões, práticas e identidades, sem essencialismos ou predefinição, por terceiros ou pelo Estado, do projeto de vida a ser seguido por indivíduos ou grupos; Considerando que a Constituição Federal estabelece um conjunto de medidas a serem observadas para assegurar a igualdade e o respeito à pluralidade dos povos e comunidades tradicionais, como se depreende dos arts. 215, 216, 231 e 232, além do art. 68 do Ato de Disposições Constitucionais Transitórias; Considerando que tais artigos devem ser entendidos como um sistema de proteção constitucional dos povos e comunidades tradicionais, de modo a assegurar a efetivação dos direitos fundamentais desses grupos e irradiar efeitos para todo o ordenamento; Considerando o dever do Ministério Público de defender os direitos dos povos e comunidades tradicionais, por conta da previsão contida no art. 129, V, da Constituição Federal e do sistema constitucional acima mencionado; Considerando que a filtragem constitucional e intercultural deve permear a análise das relações sociais que envolvem povos e comunidades tradicionais, sobretudo quanto aos institutos clássicos do Direito Civil, como posse e propriedade; Considerando que essa perspectiva está em consonância com a legislação internacional sobre a matéria, notadamente a Convenção nº 169, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), internalizada por meio do Decreto nº 5.051/2004, e a Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais da UNESCO, internalizada pelo Decreto nº 6.177/2007 e consolidada pelo Decreto nº 10.088/2019; Considerando que, nesse contexto, deve ser realçado o teor da Declaração Americana e da Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, que preveem o direito à autodeterminação e o direito de buscar livremente o seu desenvolvimento econômico, social e cultural; Considerando a necessidade de leitura constitucional e intercultural da Lei nº 6.001/1973 (Estatuto do Índio) e o disposto na Lei nº 13.123/16, que trata da proteção do patrimônio genético e dos conhecimentos tradicionais, além do acesso e repartição de benefícios dos conhecimentos tradicionais; Considerando o teor do Decreto nº 6.040/2007, que institui a política nacional de desenvolvimento sustentável dos povos e comunidades tradicionais; Considerando que os povos e comunidades tradicionais são diversos, a serem identificados com base no conceito acima descrito, de modo que a enumeração de grupos possui caráter meramente exemplificativo, devendo as singularidades de cada povo ou comunidade ser reconhecida a partir de sua autoidentificação; Considerando, nesse sentido, que já possuem assento no Conselho Nacional dos Povos e Comunidades Tradicionais diversos grupos, tais como povos indígenas, comunidades quilombolas, povos e comunidades de terreiro/povos e comunidades de matriz africana, povos ciganos, pescadores artesanais, extrativistas, extrativistas costeiros e marinhos, caiçaras, faxinalenses, benzedeiros, ilhéus, raizeiros, geraizeiros, caatingueiros, vazanteiros, veredeiros, apanhadores de flores sempre vivas, pantaneiros, morroquianos, povo pomerano, catadores de mangaba, quebradeiras de coco babaçu, retireiros do Araguaia, comunidades de fundos e fechos de pasto, ribeirinhos, cipozeiros, andirobeiros e caboclos (art. 4º, § 2º, do Decreto nº 8.750/2016); Considerando a necessidade de respeito ao patrimônio cultural imaterial das comunidades, grupos e indivíduos previsto na Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial da UNESCO; Considerando que a luta global contra o racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerância correlata e todas as suas abomináveis formas e manifestações é uma questão de prioridade para a comunidade internacional, nos termos da Declaração e Programa de Ação de Durban; Considerando o dever de prevenção do genocídio e de outras atrocidades massivas, que é responsabilidade do Estado brasileiro por força da Convenção para a Repressão do Crime de Genocídio (art. VIII), internalizado pelo Decreto nº 30.822/1952, RESOLVE:
Publicado por Conselho Nacional do Ministério Público
Brasília-DF, 8 de junho de 2021.
A presente resolução dispõe acerca da atuação do Ministério Público brasileiro junto aos povos e comunidades tradicionais.
Os órgãos do Ministério Público deverão orientar as suas unidades quanto ao atendimento dos povos e comunidades tradicionais e à recepção em suas instalações físicas com base nas seguintes diretrizes:
respeito à autoidentificação de pessoa ou grupo como representante de povo ou comunidade tradicional;
atenção às especificidades socioculturais dos grupos e flexibilização de exigências quanto a trajes, de modo a respeitar suas formas de organização e vestimentas, bem como pinturas no corpo, adereços e símbolos;
priorização do atendimento presencial e da recepção nas unidades, devendo o atendimento remoto ocorrer em circunstâncias excepcionais, devidamente motivadas, devendo ser oferecidas à pessoa atendida as condições necessárias para apresentar suas demandas;
A atuação do Ministério Público junto aos povos e comunidades tradicionais se pautará pela observância da autonomia desses grupos e pela construção de diálogo intercultural permanente, de caráter interseccional.
A autoatribuição de identidade como povo e comunidade tradicional deve ser respeitada pelo Ministério Público, cabendo ao órgão atuar e zelar para que o Poder Público não exerça qualquer discriminação e promova a efetivação do regime jurídico que dela decorre.
O Ministério Público deve garantir o respeito à autoatribuição por parte dos órgãos e instituições incumbidos da promoção de políticas públicas destinadas aos povos e comunidades tradicionais.
O diálogo intercultural deve abranger os princípios da informalidade, presença física e tradução intercultural.
A informalidade consiste na aproximação e no estabelecimento de vínculos com os povos e comunidades tradicionais da área de atuação do órgão, por meio de uso de linguagem acessível e informação clara acerca de suas atribuições, bem como escuta permanente sobre as demandas dos grupos.
A presença física corresponde à adoção de uma rotina periódica de visitas aos territórios para o acompanhamento de demandas e apresentação de informações, sem prejuízo da realização de reuniões na sede do órgão para a mesma finalidade ou casos urgentes.
A tradução intercultural consiste na adoção dos meios necessários para facilitar o diálogo e permitir a compreensão da linguagem ou dos modos de vida dos grupos, valendo-se, quando necessário, de intérpretes, da antropologia e de outras áreas do conhecimento para a identificação de especificidades socioculturais dos grupos.
O Ministério Público deve viabilizar a observância do direito à participação dos povos e comunidades tradicionais e a necessidade de consideração efetiva dos seus pontos de vista em medidas que os afetem.
A diretriz fundamental de participação consiste na garantia do direito à consulta prévia, livre e informada aos povos interessados nos casos específicos em que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los diretamente;
A ausência de consulta prévia enseja a nulidade de processos e procedimentos, cabendo ao Ministério Público zelar pela sua observância, por meio do respeito aos protocolos de consulta elaborados pelos grupos e pela cobrança de sua aplicação junto ao Poder Público.
O território é o eixo central em torno do qual gravitam os espaços necessários à reprodução cultural, social e econômica dos povos e comunidades tradicionais, sejam eles utilizados de forma permanente ou temporária.
O respeito aos territórios independe da sua regularização formal pelo Estado, cabendo ao Ministério Público adotar as medidas necessárias para viabilizar o seu reconhecimento e garantir que a análise de suas características não esteja limitada aos regimes civis de posse e propriedade, devendo prevalecer uma compreensão intercultural dos direitos fundamentais envolvidos, com ênfase em aspectos existenciais dos bens jurídicos em discussão.
O Ministério Público deve assegurar que qualquer tipo de discussão judicial em áreas situadas em territórios de povos e comunidades tradicionais acarrete a sua intervenção obrigatória.
As remoções e os deslocamentos forçados de povos e comunidades tradicionais implicam violações de direitos humanos e devem ser evitados, devendo o Ministério Público atuar para buscar sempre soluções alternativas.
A elaboração, a implementação e o monitoramento de políticas públicas no território devem ser realizados junto aos Municípios, Estados e União, sem qualquer distinção, cabendo ao Ministério Público zelar pelo respeito à territorialidade, à autonomia dos grupos e às suas especificidades socioculturais.
A instauração de expediente destinado a monitorar o acesso às políticas públicas pelas comunidades tradicionais, bem como a intervenção do membro do Ministério Público para a efetivação dos direitos fundamentais dessas coletividades independe da finalização do processo de regularização dos respectivos territórios.
A atuação em prol de políticas públicas demanda prévio diálogo com o grupo, na forma do art. 4º, podendo abranger diversos temas, como saúde, educação, acesso a água, transporte escolar, trabalho, proteção social, energia elétrica, entre outros.
A intervenção obrigatória do Ministério Público em processos judiciais que tratam dos interesses dos povos e comunidades tradicionais não conduz à exclusividade na representação judicial dos grupos, devendo o órgão ministerial zelar para que eles sejam citados e intimados de todos os processos que os afetem, a fim de que possam apresentar suas manifestações de forma autônoma, sob pena de nulidade.
Os ramos do Ministério Público deverão, mediante prévia análise das condições estruturais de suas unidades e prévio diálogo intercultural, implementar coordenações, grupos de trabalho e núcleos destinados ao estudo, à atuação coordenada e ao aprimoramento do trabalho dos membros na atuação junto aos povos e comunidades tradicionais.
Os ramos do Ministério Público poderão organizar encontros anuais com os povos e comunidades tradicionais, nos moldes estabelecidos pela Recomendação CNMP nº 61, de 25 de julho de 2017 , de forma a permitir a escuta dos grupos e estabelecer um planejamento institucional de atendimento a eles.
A Comissão de Defesa dos Direitos Fundamentais do CNMP criará e manterá banco de dados sobre a atuação do Ministério Público junto aos povos e comunidades tradicionais, além de divulgar periodicamente boas práticas na matéria.
ANTÔNIO AUGUSTO BRANDÃO DE ARAS Presidente do Conselho Nacional do Ministério Público