Recomendação CNMP nº 110 de 30 de Abril de 2024
Dispõe sobre a integração da atuação do Ministério Público brasileiro para o enfrentamento de práticas que atentem contra a liberdade de voto durante o período das eleições.
O CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO , no exercício das atribuições conferidas pelo art. 130-A, § 2º, I, da Constituição Federal, e com fundamento no art. 147 e seguintes de seu Regimento Interno, em conformidade com a decisão Plenária proferida na 5ª Sessão Ordinária de 2024, realizada em 16 de abril de 2024, nos autos da Proposição nº 1.00205/2024-15 ; Considerando que o Ministério Público tem por incumbência a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, (CF, arts. 1º, III e IV, e 127, caput ); Considerando que a República Federativa do Brasil é um Estado Democrático de Direito lastreado nos princípios fundamentais da cidadania, da dignidade da pessoa humana, dos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e do pluralismo político (CF, art. 1º, II, III, IV e V) que imantam todo o ordenamento jurídico brasileiro; Considerando que a Constituição Federal resguarda a liberdade de consciência, de expressão e de orientação política (CF, art. 1º, II e V; e art. 5º, VI e VIII), protegendo o livre exercício da cidadania, notadamente por meio do voto direto e secreto, que assegura a liberdade de escolha de candidatas ou candidatos, no processo eleitoral, por parte de todas as pessoas cidadãs; Considerando que a liberdade política, dada sua importância, conta com previsão em diplomas internacionais de Direitos Humanos, como, por exemplo, no Pacto Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos da ONU (1966), que dispõe, em seu art. 25, que “Todo cidadão terá o direito e a possibilidade, sem qualquer das formas de discriminação mencionadas no artigo 2 e sem restrições infundadas: a) de participar da condução dos assuntos públicos, diretamente ou por meio de representantes livremente escolhidos; b) de votar e de ser eleito em eleições periódicas, autênticas, realizadas por sufrágio universal e igualitário e por voto secreto, que garantam a manifestação da vontade dos eleitores; c) de ter acesso, em condições gerais de igualdade, às funções públicas de seu país”; C ONSELHO N ACIONAL DO M INISTÉRIO P ÚBLICO Recomendação 110, de 30 de abril de 2024. 2/5 Considerando que uma mesma conduta ilícita, dado seu caráter multifacetado, pode ensejar a possibilidade de sancionamento em diversas esferas de responsabilização, atraindo a atribuição de diversos ramos e unidades Ministério Público brasileiro, bem ainda que o diálogo institucional é a medida mais efetiva visando à integral fiscalização e prevenção de atos atentatórios à liberdade do voto, no cumprimento da missão institucional de defesa do regime democrático; Considerando que determinados ilícitos eleitorais podem, a um só tempo, ensejar violação de normas trabalhistas, militares, disciplinares, bem como configurar ato de improbidade administrativa, conforme o caso, cuja apuração e responsabilização são autônomas e independentes, mas que exigem atuação integrada e cooperativa entre os Membros do Ministério Público brasileiro; Considerando que, como categoria base, o ilícito eleitoral possui diversas espécies, previstas no microssistema jurídico eleitoral, podendo ser agrupadas da seguinte forma: i) abuso de poder; ii) fraude; iii) corrupção; iv) captação ou gasto ilícito de recursos em campanha eleitoral; v) captação ilícita de sufrágio; vi) condutas vedadas a agentes públicos; e que todas essas espécies são interdisciplinares e multifacetadas, tutelando, por fim, a liberdade do voto e o equilíbrio da disputa eleitoral; Considerando que o abuso do poder econômico e do poder político, como também o uso indevido dos veículos e meios de comunicação social, constituem expedientes que atentam contra a isonomia de oportunidades dos candidatos e contra a liberdade de escolha dos eleitores, afetando a normalidade e a legitimidade das eleições, e que as condutas vedadas aos agentes públicos, servidores ou não, previstas no art. 73 da Lei nº 9.504, de 30 de setembro de 1997, tendem a afetar a igualdade de oportunidades entre candidatos nos pleitos eleitorais; Considerando que a definição de ato de improbidade administrativa encontra-se estabelecida pela Lei nº 8.429, de 02 de junho de 1992, sendo assim considerada toda conduta inadequada praticada por agentes públicos ou outros envolvidos que cause danos à administração pública, gere enriquecimento ilícito e/ou viole os princípios da Administração Pública, ensejando responsabilização, a partir do mandamento constitucional do art. 37, § 4º, da Constituição Federal; Considerando que é possível a subsunção de determinados ilícitos eleitorais a alguma das tipificações previstas nos arts. 9° e 10 da Lei nº 8.429, de 1992, quando demonstrado enriquecimento ilícito ou perda patrimonial efetiva, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação de bens, respectivamente; Considerando que os crimes eleitorais são de ação pública incondicionada, cuja titularidade ativa pertence ao Ministério Público eleitoral e que possuem como pano de fundo o contexto do pleito C ONSELHO N ACIONAL DO M INISTÉRIO P ÚBLICO Recomendação 110, de 30 de abril de 2024. 3/5 e a tutela de um ambiente de disputa isonômico e legal, garantindo ao eleitor a liberdade para escolha dos seus representantes; Considerando a necessidade de maior fiscalização e cuidado com a prevenção e a repressão de atos praticados contra a liberdade de voto de grupos menorizados politicamente, que levem em consideração questões de gênero, raça, etnia e liberdade religiosa como marcadores que demandam maior atenção; Considerando que a Convenção nº 190 da Organização Internacional do Trabalho, aplicada por força do art. 8º da CLT, reconhece que a violência e o assédio no mundo do trabalho constituem violações ou abusos aos direitos humanos, e que a violência e o assédio são uma ameaça à igualdade de oportunidades, portanto, inaceitáveis e incompatíveis com o trabalho decente, que deve se pautar pelo respeito mútuo e pela dignidade do ser humano; Considerando que o exercício do poder empresarial é limitado pelos direitos fundamentais da pessoa humana, o que torna ilícita qualquer prática que tenda a excluir ou restringir, dentre outras, a liberdade do voto das pessoas que ali trabalham, bem como que a utilização do contrato de trabalho para o exercício ilícito de pressão ou de impedimento da fruição de direitos, de interesses ou de vontades do empregado é prática que viola a função social do contrato, prevista como baliza para os atos privados em geral, conforme os arts. 5º, XXIII, e 170, III, ambos da Constituição Federal, e o art. 421 do Código Civil, que dispõe que “A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”; Considerando que o assédio eleitoral caracteriza-se como a prática de coação, intimidação, ameaça, humilhação ou constrangimento associada a determinado pleito eleitoral, no intuito de influenciar ou manipular voto, apoio, orientação ou manifestação política de trabalhadores e trabalhadoras no local de trabalho ou em situações relacionadas ao trabalho, sendo tal atuação, também, de competência do Ministério Público do Trabalho; Considerando que, no caso de ilícitos de natureza não penal (ou de natureza penal, mas com sobreposição de responsabilidade pela independência das esferas), o membro do Ministério Público deve se atentar para a esfera administrativo-disciplinar que, por vezes, pela norma de regência, permite subsunção de condutas sem os rigores da taxatividade do Direito Penal e com sanções administrativas eficientes para prevenção geral e especial dos ilícitos eleitorais, como a demissão e a expulsão; Considerando que a questão disciplinar pode também resistir mesmo quando o crime eleitoral estiver prescrito, pois é possível que a norma disciplinar excepcione, nos casos em que condutas criminosas estejam prescritas, para um prazo prescricional disciplinar maior, possibilitando a punição da transgressão disciplinar ; C ONSELHO N ACIONAL DO M INISTÉRIO P ÚBLICO Recomendação 110, de 30 de abril de 2024. 4/5 Considerando que uma vez convocadas as Forças Armadas para a Garantia da Apuração e da Votação por Resolução do Tribunal Superior Eleitoral, com Decreto Presidencial para a atuação nessa atividade, surge parcela de poder de polícia dessas instituições militares, inaugurando-se atribuição do Ministério Público Militar para controle externo, no que concerne aos aspectos administrativos e disciplinares das forças militares, sem prejuízo da atuação do controle externo dos Ministérios Públicos Federal e Estadual, nos termos da Resolução CNMP nº 279/2023 ; Considerando a existência de canais de denúncia específicos em cada ramo e unidade do Ministério Público bem como a existência de Ouvidorias estaduais e do próprio Conselho Nacional do Ministério Público, e que deve haver a busca de maior integração e troca de informações entre esses canais, RESOLVE:
Publicado por Conselho Nacional do Ministério Público
Brasília-DF, 30 de abril de 2024.
Esta Recomendação dispõe sobre a integração da atuação do Ministério Público para o enfrentamento de práticas que atentem contra a liberdade de voto durante o período das eleições.
Recomenda-se ao membro do Ministério Público, ao tomar conhecimento de conduta caracterizadora de ilícito eleitoral passível de punição em outras esferas, como a trabalhista, a militar, a disciplinar ou a de responsabilidade por ato de improbidade administrativa, comunicar imediatamente os demais órgãos de execução com atribuição para a investigação e a promoção da responsabilização do ato, sem prejuízo da sua apuração e do compartilhamento posterior de elementos probatórios.
O compartilhamento de provas deve respeitar as disposições de proteção de dados constantes na Lei Federal nº 13.709, de 14 de agosto de 2018, e na Resolução CNMP nº 281, de 12 de dezembro de 2023, e, quando envolver prova acobertada por sigilo judicial, deve contar com prévia autorização do Judiciário.
Recomenda-se ao membro do Ministério Público que envide esforços para promover atuação concertada e integrada entre os ramos e as unidades do Ministério Público, a fim de implementar ações e medidas preventivas e repressivas de combate a atos atentatórios à liberdade de voto do cidadão.
Dentre as medidas de integração, sem prejuízo de outras que se fizerem necessárias no caso concreto, destacam-se:
a criação de rotinas para compartilhamento e troca imediatos de dados sobre fatos que chegarem ao conhecimento do membro do Ministério Público, com intercâmbio de C ONSELHO N ACIONAL DO M INISTÉRIO P ÚBLICO Recomendação 110, de 30 de abril de 2024. 5/5 elementos de informação obtidos nas investigações de natureza civil ou penal, observados os casos de reserva de jurisdição;
a articulação para realização de plantões estratégicos durante os pleitos eleitorais, envolvendo representantes dos diversos ramos e unidades do Ministério Público;
a criação de grupos de atuação finalística para o combate à prática de ilícitos eleitorais de repercussão multifacetada em outras esferas de responsabilização, como o assédio eleitoral;
a difusão de informações e a realização de campanhas de conscientização sobre a temática da liberdade de voto, com ampla divulgação em sítios da rede mundial de computadores, em mídias sociais e em veículos tradicionais de comunicação, nas sedes do Ministério Público eleitoral, com maior ênfase em ano eleitoral.
Recomenda-se aos ramos e às unidades do Ministério Público a inserção da temática da atuação integrada, incluindo os parâmetros trazidos por esta Recomendação, em cursos de capacitação para membros e servidores que atuarão no período eleitoral.
Recomenda-se aos ramos e às unidades do Ministério Público a ampla divulgação de canal para recebimento de denúncias das situações de ilícitos eleitorais de toda natureza, especialmente os de assédio eleitoral, com preferência de envio para o Ministério Público eleitoral.
PAULO GUSTAVO GONET BRANCO Presidente do Conselho Nacional do Ministério Público