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Internet das coisas

Conceito

A denominada Internet das Coisas (IoT) — tradução da expressão inglesa Internet of Things — representa uma das mais profundas transformações tecnológicas da atualidade, com impactos que ultrapassam as fronteiras da engenharia e da informática e penetram, de forma contundente, no campo jurídico, especialmente no âmbito do Direito do Consumidor.

Nos termos do Decreto nº 9.854/2019, que institui o Plano Nacional de Internet das Coisas, a IoT é conceituada como a “infraestrutura que integra a prestação de serviços de valor adicionado com capacidades de conexão física ou virtual de coisas com dispositivos baseados em tecnologias da informação e comunicação existentes e nas suas evoluções, com interoperabilidade” (art. 2º, I). Trata-se, portanto, de um ambiente técnico e informacional que conecta objetos físicos à internet, permitindo-lhes interagir, processar e trocar dados, geralmente de forma automatizada e contínua.

1. Transformação da Natureza dos Produtos No domínio das relações de consumo, o impacto da IoT é duplo: por um lado, ela modifica os produtos já existentes, tornando-os mais complexos, funcionais e conectados; por outro, viabiliza a criação de novos produtos e serviços híbridos, cuja funcionalidade depende intrinsecamente da conectividade e do fluxo constante de dados. São exemplos cotidianos os dispositivos inteligentes: televisores, geladeiras, termostatos, lâmpadas, brinquedos interativos, dispositivos vestíveis (wearables), automóveis com sensores e rastreadores, entre outros.

Dessa forma, os produtos passam a incorporar elementos típicos de prestação de serviços — como a coleta e tratamento de dados, atualizações automáticas de software e a interação em tempo real com o usuário — criando uma zona híbrida que desafia as tradicionais categorias jurídicas de "produto" e "serviço", conforme delineadas no artigo 3º do Código de Defesa do Consumidor.

2. Relação de Dependência Tecnológica e Obsolescência Programada A funcionalidade dos produtos conectados depende, com frequência, da atualização periódica dos softwares embarcados e da manutenção de servidores e redes. Essa dependência cria assimetria de poder em favor dos fornecedores, especialmente quando a atualização se encontra sob seu controle exclusivo. Ao limitar ou cessar essas atualizações, o fornecedor pode induzir à obsolescência técnica do produto, prática que, embora não expressamente vedada pelo ordenamento jurídico, pode ser interpretada como violação ao princípio da boa-fé objetiva e ao dever de adequação do produto, previstos nos artigos 4º, III, e 6º, I, do CDC.

Há, portanto, um poder técnico e contratual concentrado nas mãos do fornecedor, o qual pode condicionar o pleno exercício das utilidades do produto ao fornecimento contínuo de suporte digital. Essa circunstância torna o consumidor vulnerável não apenas pela sua posição econômica, mas sobretudo por sua vulnerabilidade técnica, o que reforça a necessidade de informação qualificada e precisa, nos termos dos artigos 6º, III, 31 e 46 do CDC.

3. Conteúdo das Obrigações do Fornecedor A aquisição de um produto com tecnologia IoT implica, para o consumidor, o recebimento de um conjunto composto de elementos: (a) o hardware físico; (b) o software permanentemente incorporado e não removível sem conhecimento técnico especializado; (c) aplicações digitais adicionais, fornecidas pelo próprio fabricante ou por terceiros; (d) atualizações regulares de software e segurança; (e) serviços de conectividade e armazenamento de dados; (f) o tratamento de dados pessoais, sensíveis ou não, que alimentam a lógica operacional do dispositivo.

A prestação, portanto, envolve obrigações de dar e de fazer, cujas fronteiras contratuais precisam estar claramente delineadas. O contrato de consumo deve refletir de forma precisa: os elementos essenciais do produto; as condições de manutenção da funcionalidade; a possibilidade de substituição ou substituição de aplicações; os custos envolvidos para fruição plena do produto; e, ainda, a política de proteção de dados aplicada ao dispositivo.

4. Responsabilidade Solidária dos Fornecedores Outro aspecto delicado reside na apuração da responsabilidade civil no caso de defeito ou vício, em produtos que dependem de múltiplos agentes para sua funcionalidade. O CDC, nos artigos 12 a 14, traça diferentes regimes de responsabilidade, sendo mais restrito quanto ao fato do produto, cuja solidariedade se restringe aos integrantes da cadeia de produção (fabricante, construtor, produtor, importador), e mais amplo nos vícios de produto ou serviço, que admitem a solidariedade entre todos os fornecedores envolvidos na comercialização e prestação.

Contudo, a aplicação da IoT muitas vezes envolve fornecedores terceirizados de softwares e serviços, cuja relação com o fabricante do hardware pode variar em grau de vinculação. Em determinadas situações, o desenvolvedor do software age como parceiro comercial integrado à cadeia de fornecimento; em outras, atua como ente independente, sem qualquer subordinação ao fabricante. Surge, então, a indagação: em todos os casos deve haver responsabilidade solidária? A resposta deve ser casuística, exigindo análise contratual e fática da relação entre os agentes envolvidos.

5. Proteção de Dados Pessoais A tecnologia IoT opera com base na coleta sistemática de dados do consumidor, o que atrai a incidência da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD – Lei nº 13.709/2018). Os dispositivos conectados processam dados que podem revelar hábitos, preferências, padrões de comportamento e até mesmo informações sensíveis sobre a saúde, localização e vida íntima do consumidor.

Dessa forma, os fornecedores tornam-se controladores ou operadores de dados pessoais, devendo observar todos os princípios da LGPD, especialmente os da finalidade, necessidade, transparência, segurança e não discriminação. A ausência de consentimento claro, a falta de informação adequada ou o tratamento indevido dos dados pode ensejar sanções administrativas e indenizações por danos materiais e morais.

6. Implicações Concorrenciais e Propriedade Intelectual A dependência de determinadas aplicações e atualizações também levanta preocupações no campo do direito concorrencial e da propriedade intelectual. Acordos de exclusividade entre fabricantes de hardware e desenvolvedores de software podem configurar barreiras artificiais à entrada de novos concorrentes, afetando a livre concorrência e a liberdade de escolha do consumidor. Do mesmo modo, a utilização estratégica de direitos autorais sobre os softwares pode ser empregada para impedir a interoperabilidade com sistemas de terceiros, prática que exige análise das autoridades de defesa da concorrência.

Referências principais ARAUJO, Luiz Alberto David, e JUNIOR, Vidal Serrano Nunes. Curso de direito constitucional. 23ª edição. São Paulo: Saraiva, 2021. BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo. 9ª edição. São Paulo: Saraiva, 2020. MIRAGEM, Bruno. Curso de Direito do Consumidor. 9ª edição. São Paulo: Forense, 2024. NUNES, Rizzatto. Curso de direito do consumidor. 15ª edição. São Paulo: Saraiva Educação, 2024.

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