Bens digitais e relações de consumo
Conceito
Os bens digitais se firmam, na atual era da economia da informação, como elementos centrais das novas relações de consumo, desafiando categorias jurídicas consolidadas e exigindo um reposicionamento conceitual do que se entende por produto e propriedade no ambiente digital. Trata-se de bens incorpóreos, que se constituem a partir da organização de informações em formato digital, sendo suscetíveis de apropriação privada e circulação econômica. O CDC, em seu art. 3º, §1º, reconhece a possibilidade de bens imateriais serem objeto da relação de consumo, o que legitima a aplicação de sua disciplina a produtos digitais comercializados via internet.
Essa categoria abrange uma diversidade de conteúdos, como arquivos digitais (músicas, filmes, livros), mensagens, dados pessoais, softwares e até moedas virtuais. O fornecimento desses bens ocorre, geralmente, por meio de licenças de uso, muitas vezes com tempo limitado ou condicionadas ao uso de plataformas específicas. Essa forma de disponibilização, embora distinta da venda clássica com transmissão de propriedade plena, não afasta a incidência das regras de qualidade, segurança e adequação previstas no CDC.
A doutrina e a experiência europeia vêm contribuindo para a delimitação conceitual desses bens. A Diretiva 2019/770/UE, por exemplo, diferencia entre conteúdos digitais, bens com elementos digitais e serviços digitais, estabelecendo obrigações claras quanto à conformidade, atualizações, fornecimento e restrições de uso. Em especial, reconhece que a ausência de atualizações essenciais pode caracterizar vício do produto, o que obriga o fornecedor a reparar ou ressarcir o consumidor, inclusive quando se tratar de fornecimento contínuo ao longo do tempo.
No plano interno, esses bens suscitam desafios quanto ao exercício dos direitos decorrentes do domínio, como uso, fruição e disposição. Em alguns casos, o acesso ao conteúdo digital depende da existência de software específico, ou mesmo de um contrato de prestação de serviços contínuos (como no caso de “streamings”). Essa condição técnica não configura, por si só, abuso, desde que esteja claramente informada ao consumidor no momento da contratação. O descumprimento do dever de informação pode ensejar responsabilidade por vício do produto (art. 18 do CDC) e invalidade de cláusulas contratuais que limitem injustamente o uso do bem (art. 31 e 46 do CDC).
Outro ponto controverso diz respeito ao direito de arrependimento. Mesmo que o consumidor tenha tido acesso imediato ao bem digital, a legislação atual não estabelece exceções ao direito de desistência previsto no art. 49 do CDC, aplicável plenamente às contratações realizadas fora do estabelecimento comercial, inclusive pela internet. A possibilidade de fruição instantânea do conteúdo não afasta, por si só, a aplicação da norma, embora se reconheça, de “lege ferenda”, a pertinência de mecanismos técnicos que evitem o uso oportunista desse direito em prejuízo do fornecedor.
Por fim, os bens digitais trazem à tona a discussão sobre propriedade digital, sucessão, interoperabilidade e acesso continuado, sobretudo quando o acesso ao conteúdo está vinculado a contas pessoais, licenças não transferíveis ou serviços com prazo determinado. Tais questões demandam soluções legislativas futuras, mas, até lá, impõem ao fornecedor o dever de transparência contratual absoluta, sob pena de comprometimento da própria validade do vínculo.
Referências principais
- ARAUJO, Luiz Alberto David, e JUNIOR, Vidal Serrano Nunes. Curso de direito constitucional. 23ª edição. São Paulo: Saraiva, 2021.
- BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo. 9ª edição. São Paulo: Saraiva, 2020.
- MIRAGEM, Bruno. Curso de Direito do Consumidor. 9ª edição. São Paulo: Forense, 2024.
- NUNES, Rizzatto. Curso de direito do consumidor. 15ª edição. São Paulo: Saraiva Educação, 2024.
Remissões - Leis
- Diretiva (UE) 2019/2019
- Diretiva (UE) 2019/2019, art. 2º
- Diretiva (UE) 2019/2019, art. 6º, d
- Diretiva (UE) 2019/2019, art. 8º, b
- Diretiva (UE) 2019/2019, art. 10
- Lei 8.078/1990, art. 31
- Lei nº 10.406/2002, art. 1228
- Lei nº 8.078/1990, art. 3º, § 1º
- Lei nº 8.078/1990, art. 18
- Lei nº 8.078/1990, art. 46
- Lei nº 8.078/1990, art. 49
- Lei nº 8.078/1990, art. 51, § 1º, II