Recomendação CNMP nº 114 de 10 de Dezembro de 2024
Estabelece diretrizes sobre a atuação integrada do Ministério Público para prevenção, resposta e repressão às situações de violência escolar, bem como para a reparação às vítimas diretas e indiretas de ataques às unidades de ensino.
O CONSELHO NACIONAL DO MINISTÉRIO PÚBLICO , no exercício das atribuições que lhe são conferidas pelo artigo 130-A, parágrafo 2°, inciso I, da Constituição Federal e com arrimo no artigo 19 de seu Regimento Interno, em conformidade com a decisão Plenária tomada na tomada na 18ª Sessão Ordinária, realizada em 26 de novembro de 2024, nos autos da Proposição nº 1.00489/2024-77; Considerando que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, na forma do artigo 227 da Constituição Federal; Considerando a Lei Federal nº 13.431/2017, que estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência; Considerando a Lei Federal nº 13.935/2019, que dispõe sobre a prestação de serviços de psicologia e de serviço social nas redes públicas da educação básica; Considerando o previsto no artigo 12, incisos IX e X, da Lei n. 9.394/16, que dispõe sobre programa escolar para conscientização, prevenção e combate a todo tipo de violência, especialmente a intimidação sistemática ( bullying ), estabelecendo ações para a promoção de uma cultura de paz no ambiente escolar; Considerando a Portaria GM/MS n. 3.088/2011, incorporada na Portaria de Consolidação n. 03/2017, que recomenda a criação, ampliação e articulação de pontos de atenção à saúde para pessoas com sofrimento ou transtorno mental, incluindo aquelas com necessidades decorrentes do uso de álcool e outras drogas, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), por meio da implementação da rede de saúde mental (RAPS) e sua interface com o sistema de educação; Considerando o instituído pelo Decreto Federal n. 6.286/2007, que trata da execução do Programa Saúde na Escola; Considerando a crescente ocorrência de ataques com violência extrema em escolas no Brasil nos últimos anos, que levaram a óbito estudantes, professores e profissionais da educação; Considerando as inúmeras violências praticadas cotidianamente contra crianças e adolescentes nas escolas de todo o país, desde violências de cunho psicológico e moral, como o bullying , até violações de caráter físico e sexual, sem contar a violência institucional, aquela que é praticada pelo próprio Estado; Considerando a necessidade de uma atuação integrada, preventiva e abrangente pelo Ministério Público brasileiro para lidar com a violência nas escolas e garantir um ambiente educacional seguro, acolhedor e propício ao desenvolvimento pleno dos estudantes; Considerando o Protocolo de Atuação Integrada em Casos e Identificação de Ações Hostis e Ataques contra a Comunidade Escolar, confeccionado pela Comissão Temática Nacional de Combate e Prevenção à Violência Contra a Comunidade Escolar, criada no âmbito do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais do Ministério Público do Estados e da União (CNPG), que contou com a integração das Comissões Permanentes do Grupo Nacional de Direitos Humanos (GNDH), como a de Educação (COPEDUC), a da Infância e Juventude (COPEIJ), a de Defesa da Saúde (COPEDS) e a de Defesa dos Direitos Humanos (COPEDH); e com a integração do Grupo Nacional de Combate às Organizações Criminosas (GNCOC) e do Grupo Nacional de Coordenadores de Centros de Apoio Criminal (GNCCRIM); Considerando a importância de o Ministério Público brasileiro centrar sua atuação para o alcance dos objetivos da Agenda 2030 da Organização das Nações Unidas (ONU), em especial, os objetivos 3 (Saúde e Bem-Estar), 4 (Educação de Qualidade) e 8 (Trabalho Decente e Crescimento Econômico); Considerando que a Lei n. 9.394/1996 (Diretrizes e Bases da Educação Nacional) prevê, em seu artigo 1º, caput e § 2º, que “a educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais”, sendo imperioso que a educação escolar se vincule ao mundo do trabalho e à prática social, incentivando a promoção de ambientes escolares, de trabalho, domésticos, de lazer e comunitários em geral, seguros, saudáveis e livres de quaisquer violências; Considerando que a promoção de ambientes escolares física e emocionalmente seguros e saudáveis tende a melhorar os resultados do processo ensino-aprendizagem, além de ser uma forma de educar pelo exemplo; Considerando, por fim, que o Ministério Público tem o dever institucional de defender a ordem jurídica e de zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública destinados à efetivação dos direitos assegurados às crianças e adolescentes pela Lei e pela Constituição Federal, observados os princípios da proteção integral e da prioridade absoluta inerentes à matéria, respeitada a independência funcional dos membros e a autonomia das unidades do Ministério Público da União e dos Estados, RECOMENDA:
Publicado por Conselho Nacional do Ministério Público
Brasília-DF, 10 de dezembro de 2024.
Esta Recomendação estabelece diretrizes sobre a atuação integrada do Ministério Público para prevenção, resposta e repressão às situações de violência escolar em todas as suas formas, bem como para a reparação às vítimas diretas e indiretas de ataques às unidades de ensino.
Recomenda-se às Procuradorias-Gerais de Justiça, em articulação com outros ramos e unidades do Ministério Público brasileiro, sempre que cabível, que sejam:
criados grupos de trabalho, grupos especiais de atuação, forças-tarefa ou órgãos congêneres, no âmbito de cada unidade, visando à atuação articulada do Ministério Público na temática, os quais poderão ser acionados pelos membros para atuar em caráter preventivo ou em situações de crise ou incidentes com múltiplas vítimas (IMVs);
criadas estruturas de apoio especializado (como CyberGAECOs ou similares) com a finalidade de realizar o monitoramento ativo das redes sociais para prevenir a cooptação ao extremismo e a radicalização de crianças, adolescentes e jovens, e antecipar eventuais cenários de crises e ataques violentos às escolas, estimulando fluxos de comunicação entre os respectivos órgãos de cada Ministério Público;
estabelecidos fluxos e protocolos internos de atuação para situações de violência extrema nas escolas, com definição dos órgãos responsáveis por monitorar e receber dados e notícias a respeito de ações de hostilidade e de ataques à comunidade escolar, bem como de comunicação imediata dessas informações aos demais órgãos do Ministério Público e outros órgãos ou instituições que tenham atribuição para atuar em tais ocorrências;
estimuladas, em parceria com outros órgãos, Poderes e instituições, a criação de protocolo e/ou planos de segurança escolar, de caráter interinstitucional, com a criação de Comissões de Proteção e Segurança Escolar e de fluxos definidos e implementados em todas as escolas públicas e privadas, com vistas a treinar e orientar os profissionais da educação, estudantes e familiares, bem como os demais servidores porventura envolvidos em situações de violência nas escolas;
incluídos conteúdos relativos à saúde e à segurança nas escolas e no trabalho, bem como à prevenção de acidentes, de doenças e de todas as formas de violência, como temas transversais nos currículos de todos os níveis de ensino, bem como que noções de primeiros socorros sejam ministradas aos estudantes, de acordo com diretrizes específicas para cada faixa etária;
articuladas com o Poder Executivo ações para garantia de infraestrutura básica em todas as unidades escolares, as quais devem ter asseguradas condições de segurança, higiene, conforto e acessibilidade, controle de acesso de pessoas estranhas ao estabelecimento, programas de prevenção de acidentes, de doenças e de todas as formas de violência, planos preventivos contra incêndios e/ou catástrofes naturais, inclusive com simulações periódicas de situações de crise, bem como certificação de regularidade do Corpo de Bombeiros, Alvará de Habitação ou Regularidade Civil da edificação e Alvará expedido pela Vigilância Sanitária;
desenvolvidos projetos e/ou programas institucionais para o aprimoramento da atuação ministerial, a fim de garantir, entre outros, a:
implementação da Lei Federal n. 13.431/2017, que estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência, observando os parâmetros da Resolução CNMP n. 287/2024, com destaque para o envolvimento da área da educação;
implementação da Lei Federal n. 13.935/2019, que dispõe sobre a prestação de serviços de psicologia e de serviço social nas redes públicas da educação básica;
implementação de um programa escolar para conscientização, prevenção e combate a todo tipo de violência, especialmente a intimidação sistemática ( bullying ), estabelecendo ações para a promoção de uma cultura de paz no ambiente escolar, tal qual previsto no artigo 12, incisos IX e X, da Lei n. 9.394/16, e na forma das Leis Federais n. 13.185/2015 e 14.811/2024, utilizando-se, preferencialmente, os métodos e técnicas da justiça restaurativa;
implementação da rede de saúde mental (RAPS) e sua interface com o sistema de educação, inclusive por meio da execução do Programa Saúde na Escola, instituído pelo Decreto Federal n. 6.286/2007;
implementação da gestão democrática nas escolas, por meio do cumprimento da Meta 19 do Plano Nacional de Educação e suas estratégias, com foco na criação de grêmios estudantis, associação de pais e professores e conselhos escolares; na forma de seleção dos diretores escolares; na construção participativa do projeto político-pedagógico da escola; na participação da comunidade escolar nas decisões e na gestão da unidade educacional; e no direito à participação e oitiva obrigatória de crianças e adolescentes nos assuntos de seu interesse;
implementação da educação integral e inclusiva associada à escola em tempo integral, por meio do cumprimento da Meta 6 do Plano Nacional de Educação, bem como pela promoção da Educação em Direitos Humanos, com foco no enfrentamento ao racismo estrutural, à misoginia, à LGBTfobia, ao capacitismo e às diversas discriminações nas escolas e na sociedade, inclusive por meio do cumprimento das Leis Federais n. 10.639/2003 e n. 11.645/2008, que tratam da História e Cultura Afro-Brasileira e Africana e História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena nas escolas brasileiras; implementar medidas atinentes ao respeito à liberdade dos professores de ensinar, aprender e divulgar informações relacionadas à educação integral em sexualidade (EIS), bem como a obrigação de ensinar EIS de acordo com as normas internacionais de direitos humanos; implementar educação crítica das mídias, com enfoque no combate à desinformação, ao negacionismo científico e ao uso abusivo de plataformas e tecnologias da informação e da comunicação; e promover atividades atrativas no contraturno escolar, tais como atividades esportivas, culturais, artísticas e sociais;
implementação de mecanismos de proteção integral e de promoção dos direitos e apoio às vítimas, na forma da Resolução CNMP n. 243/2021, com a criação de fluxo específico para o atendimento de demandas dessa natureza, assim como para fins de cumprimento do artigo 59-A do Estatuto da Criança e do Adolescente;
implementação dos artigos 26-A e 26, §9º, da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei Federal n. 9.394/96), com incentivo de participação de programas de diagnósticos nacionais disponibilizados pelo Ministério da Educação;
implementação da Lei Federal n. 13.722/2018, conhecida como Lei Lucas, que torna obrigatória a capacitação em noções básicas de primeiros socorros de professores e funcionários de estabelecimentos de ensino públicos e privados de educação básica e de estabelecimentos de recreação infantil;
implementação da Lei Federal n. 14.819/2024, conhecida como Política Nacional de Atenção Psicossocial nas Comunidades Escolares; e
incorporação de mecanismos de ação preventiva pelo Ministério Público também em situações de violência autoprovocada (mutilação, tentativa de autoextermínio) e violência interpessoal (entre alunos, alunos e professores ou entre pessoas da comunidade e do corpo escolar), considerando que essas tipologias de violência são as mais recorrentes e, uma vez que se previnem atos violentos aparentemente individualizados ou isolados, também se previne a escalada violenta para os ataques às escolas;
desenvolvidas campanhas de prevenção e combate ao bullying , ao discurso de ódio, à violência de gênero e contra outras minorias, ao extremismo e à radicalização, à promoção de cultura de paz, à orientação do uso saudável das redes sociais com controle parental, à saúde mental infanto-adolescente e à participação da comunidade na gestão escolar;
realizadas formações para os membros e servidores do Ministério Público sobre as violências contra, nas e às escolas e o enfrentamento do extremismo, inclusive a temática da violência percebida, praticada ou enfrentada pela escola; e
orientadas as assessorias de comunicação ou órgão congênere do Ministério Público a garantir uma cobertura midiática adequada às situações de violência, com preservação da intimidade das vítimas diretas e indiretas e sem exposição de qualquer informação sobre o eventual agressor, observada a Lei Geral de Proteção de Dados, bem como a Resolução CNMP 281, de 12 de dezembro de 2023.
Aplica-se, no que couber, o disposto neste artigo às chefias dos ramos do Ministério Público da União, em especial ao Ministério Público Federal, recomendando-se o monitoramento ativo dos serviços de internet transnacionais, nos termos do inciso II, bem como a fiscalização da União acerca da implementação da Lei Federal n. 14.643/2023, que criou o Sistema Nacional de Acompanhamento e Combate à Violência nas Escolas (SNAVE).
Recomenda-se aos Promotores de Justiça que sejam tomadas as seguintes providências, no âmbito de suas atribuições, sem prejuízo de outras:
sejam desenvolvidos protocolos ou planos de segurança nas escolas, em parceria com os órgãos de educação e de segurança pública, com treinamento e formação de todos os profissionais envolvidos;
seja criado fluxo interno e externo de comunicação e definidos pontos focais para intervenções em suspeitas de ataques às escolas;
sejam desenvolvidas ações para garantia de infraestrutura básica em todas as unidades escolares, as quais devem ter asseguradas condições de segurança, higiene, conforto e acessibilidade, controle de acesso de pessoas estranhas ao estabelecimento, programas de prevenção de acidentes, de doenças e de todas as formas de violência, planos preventivos contra incêndios e/ou catástrofes naturais, inclusive com simulações periódicas de situações de crise, bem como certificação de regularidade do Corpo de Bombeiros, Alvará de Habitação ou Regularidade Civil da edificação e Alvará expedido pela Vigilância Sanitária;
sejam avaliadas as condições de zeladoria das instituições de ensino (iluminação, limpeza, manutenção, etc.), encorajando um cuidado coletivo com o espaço e o ambiente, e o compromisso das instituições para adoção das medidas corretivas e preventivas indicadas, em prazos razoáveis e/ou condizentes com a urgência que o caso requer;
sejam monitoradas a frequência e a suficiência de patrulhamento policial nas cercanias das escolas, evitando-se, contudo, a adoção de medidas desproporcionais, como revistas indiscriminadas, policiamento ostensivo armado dentro das escolas, impedimento de frequência ou a exclusão escolar, entre outros;
haja atuação imediata caso tome ciência de ameaça de ataque à escola, avaliando a necessidade de medidas de urgência, tais como:
acionamento da Polícia Militar ou do órgão indicado no fluxo institucional para situações de violência extrema nas escolas;
acionamento do grupo de trabalho ou força-tarefa existente na respectiva unidade, bem como o CyberGAECO ou órgão similar;
busca e apreensão de armas brancas ou de fogo, artefatos explosivos e, especialmente, de computadores, telefones celulares e demais dispositivos eletrônicos, além de todo e qualquer elemento de convicção visando à comprovação da prática dos crimes e à prevenção de atos de violência;
afastamento do sigilo dos dados armazenados em equipamentos apreendidos ou remotamente ("em nuvem"), incluindo-se comunicações privadas realizadas por e-mail e qualquer tipo de aplicativo de comunicação ou mensageria, ainda que apagados, com autorização para acesso imediato e posterior extração dos dados; e
requerimento de prisão cautelar ou de internação provisória do suposto agressor, em sendo o necessário;
sejam desenvolvidas ações com vistas ao cumprimento das diretrizes estabelecidas no inciso VI do artigo anterior, inclusive e especialmente por meio da adesão aos projetos ou programas institucionais criados;
sejam realizadas visitas às escolas, em especial naquelas situadas em locais de vulnerabilidade socioeconômica, para a realização de palestras e/ou rodas de conversas com os estudantes, profissionais da educação e comunidade escolar, para que todos possam se expressar, sejam escutados, possam refletir e intervir coletivamente sobre as situações de violência, inclusive sobre os momentos de crise, orientando as famílias para a observação de sinais importantes de seus filhos quanto a qualquer tipo de sofrimento e/ou intenção de prática de violência;
seja evitada a disseminação de informações que gerem o aumento da repercussão e causem pânico social, mantendo conduta discreta e buscando atender e acolher as vítimas diretas e indiretas;
zelem pela tramitação prioritária de qualquer processo judicial ou procedimento extrajudicial que tenha relação com o tema violência nas escolas;
sejam articuladas ações com as Secretarias Municipais de Assistência Social, para que os profissionais da educação sejam mais bem informados sobre as políticas públicas executadas pelos equipamentos socioassistenciais, a fim de acioná-los em favor de crianças, adolescentes, ou suas famílias, quando verificada a necessidade de abordagem e atendimento assistencial; e
sejam articuladas ações com a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) do Município, em especial para o acompanhamento de demandas de saúde mental nas escolas e para o atendimento de vítimas de eventuais situações de violência nos estabelecimentos de ensino.
Aplica-se, no que couber, o disposto neste artigo aos membros dos ramos do Ministério Público da União, em especial do Ministério Público Federal e do Ministério Público do Trabalho.
PAULO GUSTAVO GONET BRANCO Presidente do Conselho Nacional do Ministério Público