Origem Histórica
Conceito
O Direito do Consumidor no Brasil teve uma evolução tardia e sofreu com a aplicação inadequada do Código Civil de 1917 às relações de consumo até a promulgação do Código de Defesa do Consumidor (CDC) em 1990. Durante quase um século, a legislação civil, baseada na tradição do direito europeu do século XIX, foi utilizada para regular relações que exigiam um tratamento diferenciado, gerando equívocos na interpretação jurídica. Diferentemente do direito civil, que pressupõe que ambas as partes contratantes estão em pé de igualdade e negociam livremente os termos de um contrato, as relações de consumo são caracterizadas por um desequilíbrio entre fornecedor e consumidor, no qual os produtos e serviços são oferecidos em larga escala com contratos de adesão, nos quais o consumidor apenas aceita as condições previamente estabelecidas pelo fornecedor, sem poder alterá-las.
O Contexto Histórico e a Formação do Direito do Consumidor
Para compreender a necessidade do CDC, é essencial analisar o desenvolvimento da sociedade de massa, que se consolidou após a Revolução Industrial. O crescimento populacional nas metrópoles gerou um aumento na demanda por bens e serviços, incentivando a indústria a adotar a produção em série para reduzir custos e atender a um público maior. Esse modelo de produção exigiu também a padronização dos contratos, levando ao surgimento dos contratos de adesão, amplamente utilizados no comércio e no setor financeiro.
Nos Estados Unidos, a preocupação com a proteção do consumidor surgiu já no século XIX, com a Lei Shermann de 1890, uma legislação antitruste que buscava evitar abusos no mercado. No entanto, o movimento consumerista ganhou força na década de 1960, impulsionado pelas ações de Ralph Nader e associações de defesa do consumidor, resultando na criação de leis específicas para equilibrar a relação entre consumidores e fornecedores. Enquanto isso, no Brasil, a ausência de uma legislação específica para o consumidor perpetuou o uso do Código Civil, o que dificultou a proteção dos consumidores contra abusos de grandes empresas e instituições financeiras.
A necessidade do CDC e seu Impacto
A promulgação do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990) representou um avanço significativo, pois trouxe princípios modernos de proteção ao consumidor, alinhando-se a legislações internacionais. O CDC regulamentou diversos aspectos, como:
- Contratos de adesão (art. 54), garantindo maior equilíbrio nas relações contratuais;
- Publicidade enganosa e abusiva, protegendo consumidores contra práticas desleais;
- Direitos básicos do consumidor, incluindo o direito à informação, à segurança e à reparação de danos;
- Responsabilidade objetiva do fornecedor, tornando-o responsável por danos causados ao consumidor independentemente de culpa;
- Direito ao arrependimento, permitindo a devolução de produtos adquiridos fora do estabelecimento comercial.
- Apesar de seu atraso em relação a países como os EUA, o CDC se destacou como uma das legislações mais avançadas do mundo, influenciando reformas em países como Argentina, Paraguai, Uruguai e algumas nações europeias.
A Relação com a Constituição de 1988
Outro fator essencial para a criação do CDC foi a Constituição Federal de 1988, que estabeleceu a dignidade da pessoa humana como princípio fundamental (art. 1º, III) e reconheceu os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (art. 1º, IV). Diferente do que muitos interpretam erroneamente, a livre iniciativa não é irrestrita, mas sim condicionada à responsabilidade social. Além disso, o art. 170 da Constituição estabelece que a atividade econômica deve respeitar princípios como defesa do consumidor, reforçando a necessidade de uma legislação específica. Mesmo com a promulgação do CDC, ainda existem dificuldades na sua interpretação e aplicação, pois muitos juristas e operadores do direito foram formados sob a influência do direito civil tradicional, que se baseia na autonomia da vontade e no princípio "pacta sunt servanda" (os contratos devem ser cumpridos). No entanto, esse princípio não pode ser aplicado cegamente às relações de consumo, pois o consumidor não negocia os termos do contrato, apenas adere a eles. O CDC busca justamente corrigir esse desequilíbrio, regulando as práticas comerciais para evitar abusos e proteger o consumidor como a parte mais vulnerável da relação.
O Código de Defesa do Consumidor foi uma resposta necessária ao crescimento da sociedade de consumo em massa e ao avanço do capitalismo contemporâneo, que exige um equilíbrio entre livre iniciativa e proteção social. Embora tenha sido promulgado com grande atraso em relação a outros países, o CDC incorporou os princípios mais modernos da proteção ao consumidor e se tornou uma referência mundial.
No entanto, sua efetiva aplicação ainda enfrenta desafios devido à resistência de setores jurídicos e empresariais acostumados ao modelo tradicional do direito civil, que não foi concebido para lidar com as complexidades das relações de consumo.
Referências principais
- ARAUJO, Luiz Alberto David, e JUNIOR, Vidal Serrano Nunes. Curso de direito constitucional. 23ª edição. São Paulo: Saraiva, 2021.
- BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo. 9ª edição. São Paulo: Saraiva, 2020.
- MIRAGEM, Bruno. Curso de Direito do Consumidor. 9ª edição. São Paulo: Forense, 2024.
- NUNES, Rizzatto. Curso de direito do consumidor. 15ª edição. São Paulo: Saraiva Educação, 2024.