Inteligência artificial e relações de consumo
Conceito
O avanço da tecnologia da informação, notadamente com o surgimento da inteligência artificial (IA), promoveu uma inflexão relevante nos modos tradicionais de operação econômica. A IA ultrapassa a simples execução de comandos programados, sendo capaz de interpretar contextos e tomar decisões autônomas, com base em padrões identificados. Trata-se, portanto, de um sistema informatizado que simula a capacidade humana de raciocinar e agir, embora de forma artificial.
Nas relações de consumo, a utilização da IA suscita novos desafios jurídicos. Ainda que os sistemas inteligentes não detenham personalidade jurídica, suas interações e decisões impactam diretamente o vínculo contratual entre fornecedor e consumidor. O Código de Defesa do Consumidor (CDC), em seu artigo 30, dispõe que toda informação ou publicidade suficientemente precisa integra o contrato, mesmo que veiculada por sistemas automatizados. Assim, as declarações feitas por IA vinculam o fornecedor.
Além disso, o uso da IA para tratamento de dados pessoais – por exemplo, em análises de crédito – deve observar rigorosamente a legislação de proteção de dados, sobretudo a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). A possibilidade de decisões discriminatórias, ainda que com base em critérios estatísticos, exige atenção quanto à legalidade e à finalidade do tratamento de dados.
No atendimento ao consumidor, embora a IA proporcione maior eficiência e redução de custos, sua limitação diante de situações não padronizadas impõe a necessidade de canais alternativos de contato humano. O Decreto 7.962/2013, que regulamenta o comércio eletrônico, assegura esse direito ao consumidor, exigindo meios eficazes de comunicação com o fornecedor.
Quanto à responsabilidade civil, os sistemas dotados de IA podem causar danos decorrentes de falhas em decisões autônomas. A responsabilidade do fornecedor, nesses casos, permanece objetiva, conforme os artigos 12 a 14 do CDC, não sendo necessária a prova de culpa. Contudo, destacam-se dois pontos: (i) a extensão da cadeia de fornecimento e a identificação dos sujeitos responsáveis solidariamente; e (ii) a natureza do defeito – se vinculado ao produto ou ao serviço – o que altera os sujeitos passivos da responsabilidade.
No que se refere aos chamados riscos do desenvolvimento, o CDC prevê, no artigo 12, §1º, III, que a identificação do defeito considera o estágio do conhecimento técnico no momento da colocação do produto no mercado. Contudo, o mesmo dispositivo estabelece que o defeito decorre do uso e dos riscos que razoavelmente dele se esperam. Ou seja, mesmo não havendo previsão exata do dano, se este se insere no espectro de riscos previsíveis da tecnologia, poderá haver responsabilização.
O exemplo mais emblemático é o dos veículos autônomos. Em caso de acidente, questiona-se se a responsabilidade será do fabricante, do fornecedor do software, do proprietário do veículo, ou de todos solidariamente. Embora o CDC tenda à responsabilização do fabricante (art. 12), outros agentes podem ser responsabilizados, especialmente quando o dano decorrer do serviço prestado pela IA.
Em termos regulatórios, o Direito brasileiro ainda estrutura sua abordagem sobre a IA. O modelo europeu, que inspira o anteprojeto nacional, propõe uma regulação baseada no risco (risk-based approach), classificando as aplicações em categorias: riscos inaceitáveis, elevados, limitados e mínimos. No Brasil, propõe-se a responsabilidade objetiva do fornecedor e do operador nos casos de risco excessivo ou alto risco, enquanto, para aplicações comuns, admite-se presunção de culpa.
Conclui-se que, embora o CDC ofereça base normativa suficiente para lidar com muitos dos efeitos da IA nas relações de consumo, a crescente complexidade das decisões autônomas e a imbricação com outras tecnologias exigirão, a médio prazo, complementações legislativas específicas e adequações interpretativas constantes.
Referências principais
- ARAUJO, Luiz Alberto David, e JUNIOR, Vidal Serrano Nunes. Curso de direito constitucional. 23ª edição. São Paulo: Saraiva, 2021.
- BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo. 9ª edição. São Paulo: Saraiva, 2020.
- MIRAGEM, Bruno. Curso de Direito do Consumidor. 9ª edição. São Paulo: Forense, 2024.
- NUNES, Rizzatto. Curso de direito do consumidor. 15ª edição. São Paulo: Saraiva Educação, 2024.