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Responsabilidade dos marketplaces

Conceito

O avanço do comércio eletrônico consolidou um novo modelo de intermediação contratual centrado nas chamadas plataformas digitais de múltiplos lados, mais conhecidas como marketplaces. Esses ambientes virtuais reúnem, em um mesmo espaço, fornecedores diretos e consumidores, operando como organizações privadas de acesso ao mercado, com crescente poder de influência sobre as condições de contratação, os padrões de consumo e o comportamento das partes envolvidas. A atuação dessas plataformas transcende a função passiva de hospedagem de conteúdo e passa a constituir um elo ativo da cadeia de fornecimento, o que exige do ordenamento jurídico uma resposta clara quanto à sua responsabilização nos casos de inadimplemento, vícios do produto ou práticas lesivas ao consumidor.

A primeira questão jurídica relevante é a qualificação da plataforma digital como fornecedora, nos termos do artigo 3º do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990). A doutrina e a jurisprudência têm adotado critérios materiais para essa definição, especialmente a partir do grau de ingerência da plataforma sobre a oferta, a intermediação do pagamento, o controle logístico, a gestão de avaliações de consumidores e a retenção de percentuais sobre o valor da transação. Quanto mais intensa for essa atuação, maior a probabilidade de que a plataforma seja reconhecida como co-fornecedora ou, no mínimo, como intermediária corresponsável pelos efeitos da contratação.

A responsabilidade civil das plataformas digitais pode seguir duas linhas interpretativas principais. A primeira, de caráter mais protetivo, entende que a confiança do consumidor na plataforma é fator determinante da sua decisão de contratar, de modo que eventuais falhas na entrega do produto ou na prestação do serviço devem gerar responsabilidade solidária entre o fornecedor direto e a plataforma, com base nos artigos 7º, parágrafo único, 14 e 34 do CDC. Trata-se da chamada teoria da aparência estendida à cadeia de fornecimento, segundo a qual o consumidor vê na plataforma o rosto do fornecedor e, por isso, tem sua confiança legitimamente depositada na estrutura que viabiliza a contratação. A responsabilidade da plataforma se funda, aqui, na função de garantir a segurança e a confiabilidade do ambiente de consumo, assumindo, portanto, os riscos inerentes à sua atividade.

A segunda linha interpretativa é mais restritiva e fundamenta-se na aplicação analógica do artigo 19 da Lei nº 12.965/2014 (Marco Civil da Internet), que limita a responsabilidade dos provedores de aplicações pelo conteúdo gerado por terceiros. Por essa ótica, a plataforma não responderia automaticamente pelos atos dos fornecedores, salvo se deixasse de cumprir ordem judicial para retirada de conteúdo ou oferta irregular. Essa visão, embora juridicamente fundamentada, revela-se insuficiente para a tutela efetiva do consumidor, sobretudo quando a plataforma interfere concretamente na execução do contrato, seja pela curadoria dos produtos ofertados, seja pela administração do pagamento, seja pela imposição de padrões de conduta aos fornecedores.

O texto normativo do CDC fornece instrumentos para compatibilizar essas duas visões. O artigo 14 impõe responsabilidade objetiva ao fornecedor de serviços, inclusive por falha de segurança e de informação, enquanto o artigo 34 admite a responsabilização solidária de todos os integrantes da cadeia de fornecimento, especialmente quando houver relação de preposição, ainda que não expressa. Por sua vez, o artigo 31 impõe o dever de veracidade e clareza na oferta, o que se estende às plataformas que veiculam, promovem ou endossam produtos e serviços. Quando a plataforma administra avaliações, ordena resultados, direciona ofertas ou omite a identificação do fornecedor, ela assume protagonismo informacional e contratual, não podendo se escusar de sua responsabilidade sob o argumento de neutralidade.

Há, ainda, um aspecto estrutural que reforça o dever de cuidado das plataformas: seu papel de “gatekeeper”, ou seja, de entidade que controla o acesso ao mercado. Essa condição lhes confere poder de exclusão de fornecedores, gestão de reputação e modelagem de experiências de consumo, inclusive por meio do tratamento de dados e da lógica algorítmica. O poder de organizar o ambiente de consumo traz consigo o dever de zelar pela segurança jurídica das transações. A omissão nesse cuidado, seja por negligência, seja por falha sistêmica, pode gerar responsabilização direta com base no risco da atividade, conforme o artigo 927, parágrafo único, do Código Civil.

A jurisprudência brasileira caminha no sentido de examinar o grau de participação da plataforma caso a caso, reconhecendo que, quando há apenas disponibilização técnica do espaço de venda, a responsabilidade da plataforma tende a ser afastada. Por outro lado, quando a plataforma se beneficia economicamente da transação, impõe regras, intermedia pagamentos ou participa da execução da entrega ou do serviço, tem-se reconhecido sua corresponsabilidade. A responsabilidade não decorre da mera existência da plataforma, mas sim de sua ingerência na relação contratual subjacente.

No plano internacional, destaca-se a orientação do Digital Services Act (Regulamento 2022/2065 da União Europeia), que estabelece a responsabilidade das plataformas que possibilitam a contratação direta entre consumidores e comerciantes, sempre que a plataforma atue de forma a induzir o consumidor médio a acreditar que o bem ou serviço é fornecido pela própria plataforma ou por alguém sob sua autoridade ou controle. Essa perspectiva protege a confiança legítima do consumidor, que muitas vezes desconhece a identidade real do fornecedor e deposita sua expectativa de segurança na plataforma intermediadora.

Não se pode ignorar, ainda, a função informativa das plataformas no que tange às avaliações de consumidores, ranqueamento de produtos e mecanismos de recomendação. Quando essas informações são utilizadas como estratégia de marketing, passam a integrar a cadeia publicitária e, como tal, estão sujeitas ao regime da publicidade enganosa ou abusiva, conforme os artigos 36 a 38 do CDC. A plataforma que organiza e divulga essas avaliações assume o dever de verificar sua veracidade mínima, sob pena de indução ao erro e responsabilidade objetiva por eventual prejuízo causado.

Em síntese, a responsabilidade dos marketplaces deve ser compreendida como expressão da proteção da confiança e da prevenção de riscos no ambiente digital. A plataforma não é um mero espectador: ela organiza, intermedeia, lucra, coleta dados e controla interações. Sua responsabilidade, portanto, não é apenas jurídica — é estrutural. E ao exercer poder, deve arcar com os ônus dele decorrentes. O direito do consumidor exige que o ambiente digital seja regido não pela invisibilidade das plataformas, mas pela sua visível responsabilidade na construção de uma experiência de consumo segura, leal e transparente.

Referências principais

  • ARAUJO, Luiz Alberto David, e JUNIOR, Vidal Serrano Nunes. Curso de direito constitucional. 23ª edição. São Paulo: Saraiva, 2021.
  • BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo. 9ª edição. São Paulo: Saraiva, 2020.
  • MIRAGEM, Bruno. Curso de Direito do Consumidor. 9ª edição. São Paulo: Forense, 2024.
  • NUNES, Rizzatto. Curso de direito do consumidor. 15ª edição. São Paulo: Saraiva Educação, 2024.
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