Relação com o Marco Civil da Internet e LGPD
Conceito
O ordenamento jurídico brasileiro não trata o ambiente digital como um território sem lei. Ao contrário, nas últimas décadas, consolidou-se um verdadeiro bloco normativo da cidadania digital, estruturado em torno de três pilares principais: o Código de Defesa do Consumidor (CDC – Lei nº 8.078/1990), o Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014) e a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD – Lei nº 13.709/2018). A atuação conjunta dessas normas é essencial para compreender os direitos e deveres que regem as relações de consumo mediadas por plataformas digitais, marketplaces, aplicativos e contratos celebrados à distância.
O CDC fornece a base principiológica e protetiva: parte da presunção de vulnerabilidade do consumidor, impõe o dever de informação, proíbe práticas abusivas, impõe responsabilidade objetiva ao fornecedor e consagra o direito à segurança, à saúde e à reparação integral dos danos. O Marco Civil da Internet, por sua vez, inaugura a proteção jurídica da internet no Brasil, estabelecendo os princípios da liberdade, privacidade, neutralidade de rede, proteção de dados pessoais e responsabilidade de intermediários. Já a LGPD aprofunda e densifica essa proteção, criando um regime jurídico próprio e autônomo para o tratamento de dados pessoais, com regras específicas sobre coleta, uso, compartilhamento, armazenamento e exclusão de dados de pessoas naturais.
No que se refere às plataformas digitais e marketplaces, o Marco Civil da Internet cumpre papel ambíguo. Por um lado, o seu artigo 19 estabelece uma cláusula de responsabilidade civil dos provedores de aplicações de internet por conteúdos gerados por terceiros, salvo em caso de descumprimento de ordem judicial. Essa regra, inspirada no modelo norte-americano da seção 230 do Communications Decency Act, visa proteger a liberdade de expressão e impedir a censura privada. Contudo, sua aplicação ao contexto das relações de consumo não pode ser automática nem absoluta. Isso porque, quando a plataforma atua de forma ativa na mediação da oferta, no processamento do pagamento, na organização da entrega ou na seleção dos produtos, ela não é mera hospedeira de conteúdo, mas participante da relação contratual.
A LGPD reforça esse entendimento ao estabelecer que todos os agentes que tratam dados pessoais — inclusive as plataformas digitais — estão submetidos a deveres objetivos de responsabilidade, segurança, transparência e prestação de contas. O tratamento de dados é, hoje, a espinha dorsal dos modelos de negócio das plataformas digitais, sendo impossível dissociar sua função de intermediação da lógica algorítmica de coleta e monetização de informações pessoais. Assim, qualquer alegação de neutralidade técnica ou desconexão entre tratamento de dados e relação de consumo é juridicamente insustentável.
O artigo 6º da LGPD apresenta uma série de princípios que devem guiar o tratamento de dados pessoais, com destaque para a finalidade, necessidade, transparência, segurança e prevenção. Tais princípios se alinham perfeitamente ao que já estava previsto nos artigos 4º e 6º do CDC, que tratam da boa-fé, da equidade e do direito à informação adequada. O que a LGPD faz é aprofundar esse sistema, reconhecendo que a proteção dos dados do consumidor é parte indissociável da sua proteção enquanto sujeito de direitos.
No plano prático, isso significa que a plataforma digital que coleta dados para segmentar ofertas, ranquear fornecedores, sugerir produtos ou personalizar preços deve informar claramente tais práticas, garantir o direito de oposição, possibilitar a portabilidade dos dados e, quando necessário, obter consentimento específico e destacado. A omissão dessas informações ou a manipulação opaca da experiência de consumo podem configurar prática abusiva, publicidade enganosa e até discriminação algorítmica, todas vedadas tanto pelo CDC quanto pela LGPD.
Além disso, a LGPD introduz o conceito de relatório de impacto à proteção de dados pessoais, exigido em operações de tratamento que representem alto risco aos direitos fundamentais. Em “marketplaces” de grande porte, nos quais há cruzamento massivo de informações sensíveis e interferência direta no comportamento do consumidor, a elaboração e divulgação desses relatórios pode ser condição para a legalidade da atividade econômica. A ausência desse mecanismo de transparência compromete o controle social e regulatório sobre os impactos das tecnologias sobre o consumo.
Em síntese, a aplicação do Marco Civil da Internet e da LGPD às relações de consumo não é mera superposição normativa, mas uma reconstrução da própria estrutura da tutela consumerista no século XXI. O CDC forneceu as bases de uma teoria da vulnerabilidade do consumidor. O Marco Civil trouxe a moldura jurídica para o ambiente digital; e a LGPD injetou substância técnica e principiológica à proteção da autodeterminação informativa. Juntas, essas normas exigem uma interpretação sistemática, finalística e atualizada, que não tolere zonas de impunidade tecnológica sob o manto da inovação.
A atuação articulada dos órgãos reguladores — como a ANPD, a Senacon, o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor e o Ministério Público — é crucial para garantir a efetividade desse regime jurídico complexo. Cabe ao Judiciário, por sua vez, interpretar essas normas de forma integrativa, à luz da Constituição Federal e do princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), compreendendo que os direitos fundamentais não são suspensos no ambiente digital, mas exigem novas formas de afirmação e proteção.
Referências principais
- ARAUJO, Luiz Alberto David, e JUNIOR, Vidal Serrano Nunes. Curso de direito constitucional. 23ª edição. São Paulo: Saraiva, 2021.
- BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo. 9ª edição. São Paulo: Saraiva, 2020.
- MIRAGEM, Bruno. Curso de Direito do Consumidor. 9ª edição. São Paulo: Forense, 2024.
- NUNES, Rizzatto. Curso de direito do consumidor. 15ª edição. São Paulo: Saraiva Educação, 2024.
Remissões - Leis
- Constituição Federal, art. 1º, III
- Constituição Federal, art. 5º, XXXII
- Constituição Federal de 1988, art. 5º, LXXIX
- Constituição Federal de 1988, art. 170, V
- Lei 8.078/1990, art. 4º
- Lei 8.078/1990, art. 31
- Lei 8.078/1990, art. 39
- Lei 8.078/1990, art. 51
- Lei nº 12.965/2014, art. 3º
- Lei nº 12.965/2014, art. 7º
- Lei nº 12.965/2014, art. 19
Lei nº 13.709/2018, art. 6º - 8º
- Lei nº 13.709/2018, art. 10
- Lei nº 13.709/2018, art. 18
- Lei nº 13.709/2018, art. 20
- Lei nº 13.709/2018, art. 42
- Lei nº 8.078/1990, art. 6º