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Direito de arrependimento em compras online

Conceito

A consagração do direito de arrependimento no ordenamento brasileiro, especialmente no contexto das contratações à distância, representa um ponto de inflexão importante na lógica contratual clássica. O artigo 49 do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/1990) institui, de forma expressa, o direito do consumidor de desistir do contrato no prazo de sete dias a contar do recebimento do produto ou da assinatura do contrato, sempre que a contratação ocorrer fora do estabelecimento comercial — conceito que, com o avanço das tecnologias de informação e comunicação, passou a abranger de modo incontornável o comércio eletrônico.

No plano principiológico, o direito de arrependimento opera como uma espécie de contrapeso normativo à ausência de contato físico e à redução da reflexão consciente nas contratações realizadas por meios digitais. A contratação à distância, pela internet, despersonaliza a experiência de consumo: o consumidor não manipula o produto, não interage com o vendedor, não verifica sensorialmente a qualidade da mercadoria ou a real funcionalidade do serviço contratado. Diante dessa privação sensorial e relacional, o ordenamento jurídico oferece um mecanismo excepcional que rompe com a rigidez dos pactos firmados — a faculdade de desfazer unilateralmente o vínculo contratual, sem necessidade de motivação ou demonstração de vício.

Esse direito potestativo possui natureza resolutiva e eficácia imediata. Seu exercício deve ser simples, direto e eficaz, de modo que qualquer tentativa de burocratizá-lo por parte do fornecedor pode configurar prática abusiva, passível de responsabilização nos termos do próprio CDC. O consumidor não está obrigado a justificar o arrependimento, tampouco a arcar com qualquer custo decorrente do exercício desse direito, inclusive despesas com frete ou tributos já recolhidos. A restituição dos valores pagos deve ser integral, sob pena de enriquecimento sem causa do fornecedor, e deve ocorrer de forma célere, a fim de preservar a efetividade da proteção legal.

No contexto do comércio eletrônico, o direito de arrependimento adquire novas camadas de sentido. O distanciamento físico é potencializado pela velocidade e informalidade da contratação online, pela ausência de mediação humana e, muitas vezes, pela pressão exercida por mecanismos de persuasão algorítmica, como escassez simulada, ofertas relâmpago e estruturas de navegação que induzem o consumidor à conclusão da compra sem tempo hábil de avaliação. Trata-se de um ambiente contratual que, embora funcional, compromete a liberdade plena de escolha. A legislação, ao prever o direito de arrependimento, busca restituir ao consumidor o tempo que lhe foi retirado pela urgência digital.

É relevante observar que o exercício desse direito, embora dotado de amplitude, não é absoluto. Deve respeitar limites pautados pela boa-fé e pela função social do contrato. O abuso no uso da faculdade resolutiva, por exemplo, com intuito meramente especulativo ou vexatório, poderá ensejar reação judicial, embora tal cenário seja mais teórico do que prático, dada a hipossuficiência presumida do consumidor. Além disso, o prazo de sete dias é considerado decadencial, não passível de interrupção ou suspensão, salvo interpretação excepcional por aplicação de normas mais protetivas (como o CDC em sua função de cláusula geral de proteção).

O Decreto nº 7.962/2013, ao regulamentar o comércio eletrônico, reforça a centralidade desse direito ao estabelecer que o fornecedor deve disponibilizar, de forma clara e ostensiva, informações sobre a existência do direito de arrependimento, suas condições de exercício e os canais adequados para tal. A omissão dessa informação pode configurar vício de informação e prática abusiva, sujeita a sanções administrativas e à reparação por danos materiais ou morais.

No campo prático, o direito de arrependimento exige, do fornecedor, a estruturação de procedimentos internos ágeis e transparentes, inclusive com canais digitais específicos para recebimento e processamento da desistência, além de sistemas que garantam a devolução de valores de maneira automatizada. A resistência operacional do fornecedor em cumprir esse dever pode ser considerada má-fé, sujeitando-o a condenações judiciais.

O advento dos contratos inteligentes (“smart contracts”) traz novos desafios à operacionalização do direito de arrependimento. A execução automática das cláusulas contratuais, baseada em códigos de programação, não pode se sobrepor à norma legal. Ainda que o contrato tenha sido autoexecutado, a devolução dos valores e o desfazimento da relação jurídica devem ser possíveis, sob pena de se violar a própria ideia de controle público sobre as relações privadas, especialmente quando uma das partes (o consumidor) está em situação de vulnerabilidade reconhecida em lei. A cláusula automatizada que impeça ou dificulte o exercício desse direito poderá ser considerada nula de pleno direito, nos termos do artigo 51 do CDC.

A jurisprudência e a doutrina caminham, portanto, para uma interpretação ampliativa e garantista do direito de arrependimento, compreendendo-o como expressão de uma lógica contratual contemporânea que prioriza a dignidade do consumidor, a confiança legítima e o equilíbrio das relações contratuais. Ele não deve ser interpretado como uma exceção incômoda, mas como um instrumento necessário à recomposição das assimetrias geradas pela impessoalidade, opacidade e velocidade das contratações digitais.

Por fim, a efetividade desse direito não depende apenas da sua previsão legal, mas da consciência dos operadores do direito, do comportamento colaborativo dos fornecedores e da atuação firme dos órgãos de proteção e fiscalização do consumidor. O arrependimento no comércio eletrônico, mais do que um direito de recuo, é uma afirmação da liberdade contratual sob nova perspectiva: a liberdade de não se vincular, mesmo depois de contratar, quando o ambiente negocial é adverso ao pleno consentimento.

Referências principais

  • ARAUJO, Luiz Alberto David, e JUNIOR, Vidal Serrano Nunes. Curso de direito constitucional. 23ª edição. São Paulo: Saraiva, 2021.
  • BARROSO, Luís Roberto. Curso de direito constitucional contemporâneo. 9ª edição. São Paulo: Saraiva, 2020.
  • MIRAGEM, Bruno. Curso de Direito do Consumidor. 9ª edição. São Paulo: Forense, 2024.
  • NUNES, Rizzatto. Curso de direito do consumidor. 15ª edição. São Paulo: Saraiva Educação, 2024.
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