Jurisprudência TSE 060131284 de 27 de novembro de 2023
Publicado por Tribunal Superior Eleitoral
Relator(a)
Min. Benedito Gonçalves
Data de Julgamento
19/10/2023
Decisão
O Tribunal, por unanimidade, acolheu a preliminar de ilegitimidade passiva, julgando o processo extinto sem resolução de mérito em relação à Coligação Brasil da Esperança, indeferiu o pedido de desentranhamento de provas, e julgou improcedentes os pedidos da ação de investigação judicial eleitoral quanto aos demais investigados, Luiz Inácio Lula da Silva e Geraldo José Rodrigues Alckmin Filho, nos termos do voto do Relator, com a ressalva de fundamentação dos Ministros Raul Araújo, Cármen Lúcia e Nunes Marques. Acompanharam o Relator, os Ministros Raul Araújo, Floriano de Azevedo Marques, André Ramos Tavares, Cármen Lúcia, Nunes Marques e Alexandre de Moraes (Presidente). Falaram: a) pelos representantes, Coligação Pelo Bem do Brasil e Jair Messias Bolsonaro, o Dr. Tarcisio Vieira de Carvalho Neto; b) pelos representados Coligação Brasil da Esperança e Luiz Inácio Lula da Silva, o Dr. Miguel Filipi Pimentel Novaes e c) em nome do Ministério Público Eleitoral, o Dr. Paulo Gustavo Gonet Branco, Vice-Procurador-Geral Eleitoral. Composição: Ministros Alexandre de Moraes (Presidente), Cármen Lúcia, Nunes Marques, Benedito Gonçalves, Raul Araújo, Floriano de Azevedo Marques e André Ramos Tavares.
Ementa
AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL. ELEIÇÕES 2022. ELEIÇÃO PRESIDENCIAL. CHAPA ELEITA. ABUSO DE PODER ECONÔMICO. USO INDEVIDO DE MEIOS DE COMUNICAÇÃO. PROPAGANDA ELEITORAL. IMPULSIONAMENTO. PRIORIZAÇÃO PAGA DE CONTEÚDOS EM APLICAÇÃO DE BUSCA DA INTERNET. PROPAGANDA POSITIVA. LICITUDE. MANIPULAÇÃO DE RESULTADOS DA BUSCA. INOCORRÊNCIA. COMPORTAMENTO NORMAL DA FERRAMENTA. IMPROCEDÊNCIA.1. Trata–se de Ação de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE) destinada a apurar a ocorrência de abuso de poder econômico e uso indevido de meios de comunicação, em que se imputa aos investigados o aporte de recursos financeiros vultosos para a contratação de impulsionamento ilícito de propaganda eleitoral.2. A petição inicial aponta que a coligação dos investigados custeou um anúncio, por meio de ferramenta de priorização de conteúdos de busca na internet (Google Ads), que direcionaria pesquisas feitas com termos como "Lula – condenação" para site com informações favoráveis ao candidato.3. Os autores alegam que a estratégia interferiu de forma ilícita no tráfego de informações, pois teria dificultado ou impedido que as pessoas usuárias do serviço de pesquisa Google tivessem acesso a fatos desabonadores para o candidato investigado. Afirmam, assim, que houve violação ao direito de livre informação, grave falseamento da verdade e manipulação mercantil de resultados de busca.4. Em contrapartida, os investigados sustentam que fizeram uso lícito da ferramenta de priorização de conteúdos, pois o anúncio remetia–se à propaganda eleitoral positiva da chapa, ademais custeado para combater desinformação. Acrescem que todos os conteúdos foram custeados com recursos de campanha declarados na prestação de contas e que a propaganda foi devidamente identificada como anúncio pago.I – Questões processuaisPreliminar de ilegitimidade passiva da Coligação Brasil da Esperança (suscitada pelos investigados). Acolhida.5. O polo passivo da AIJE se compõe exclusivamente por pessoas físicas, sejam candidatos beneficiários, sejam responsáveis pela prática abusiva. O interesse jurídico decorre de sua condição de sujeitos que podem suportar diretamente os efeitos da cassação de registro ou diploma e a inelegibilidade. Precedentes.6. No caso, ademais, a própria coligação requereu sua exclusão, sinalizando que a defesa diretamente feita pelos candidatos é suficiente para resguardar os interesses políticos secundários dos partidos políticos envolvidos.7. A intenção dos investigantes de manter a coligação adversária atrelada a uma posição processual inócua reflete interesses meramente políticos, e não jurídicos, razão pela qual não merece guarida.8. Preliminar acolhida.9. Ação parcialmente extinta, sem resolução de mérito, em relação à Coligação Brasil da Esperança.Requerimento de desentranhamento de provas (formulado pelos investigantes). Indeferido.10. Em resposta à requisição dirigida à Google, aportaram aos autos documentos relativos a todas as campanhas publicitárias contratadas pelas candidaturas de Luiz Inácio Lula da Silva e Jair Messias Bolsonaro nas eleições presidenciais de 2022, acompanhadas de dados sobre os valores despendidos e o desempenho dos anúncios.11. A requisição de dados completos foi determinada após três sucessivos requerimentos da parte autora. Os dois primeiros centraram–se no anúncio objeto da ação. No terceiro, porém, pretendeu ter acesso a todas as contratações da campanha adversária. Partindo, portanto, de imputação de uma única campanha irregular, os autores almejaram examinar todos os anúncios dos investigados, com termos de busca, valores gastos e desempenho.12. No exame desse requerimento, ou bem se considerava tratar–se de pescaria probatória (fishing expedition), por extrapolar inteiramente o fato invocado como suporte da AIJE; ou bem se entendia o requerimento como parte de um esforço de compreensão do contexto em que o anúncio reputado ilícito foi publicado.13. O segundo caminho é o que se mostrava compatível com o perfil da AIJE, uma vez que a prova permitiria analisar a conduta considerando as circunstâncias em que praticada, a posição das pessoas envolvidas e a magnitude da disputa.14. Para o adequado dimensionamento desse contexto, bem como para se evitarem sucessivas requisições a conta–gotas, a diligência foi complementada, de ofício, com a requisição de dados completos de ambas as campanhas que disputaram o segundo turno.15. No caso dos autos, a imputação de abuso de poder supõe que o anúncio indicado na inicial produziu impacto na disputa a ponto de representar "manipulação de resultados no principal site de buscas utilizado pelo eleitorado pátrio".16. Assim, há evidente relevância em delinear como se deu o uso padrão da ferramenta nas eleições presidenciais, de modo a avaliar o que possa ser uma distorção do mecanismo.17. Desse modo, evidencia–se a pertinência dos documentos requisitados. O acervo probatório é compartilhado por todos os sujeitos processuais, não merecendo acolhida a pretensão de que tenha que ser conformado apenas às alegações e teses da parte autora.18. Não há, ademais, risco de tumulto processual. A maior mobilidade da atuação das partes na colaboração com a instrução se fez acompanhar de etapas demarcadas de atuação, guiadas por decisões fundamentadas. Diante da vasta documentação fornecida pela Google, concedeu–se às partes prazo dilatado para exame, permitindo a apresentação de relatórios técnicos.19. Assegurado o respeito ao contraditório, e cumprida a função da relatoria de organizar e conduzir a instrução do feito, é certo que o peso a ser dado às provas é matéria de mérito.20. Requerimento indeferido.II – MéritoPremissas de julgamento.21. O abuso de poder econômico configura–se com a utilização de recursos financeiros com o intuito de conferir vantagem indevida a determinada candidatura.22. Não se descarta, contudo, haver margem de atuação lícita propiciada pelo porte econômico de determinada campanha e pelas escolhas estratégicas que orientam a aplicação de recursos.23. O uso indevido de meios de comunicação, tradicionalmente, caracteriza–se pela exposição midiática desproporcional de candidata ou candidato. O desequilíbrio da exposição é um parâmetro que foi construído considerando–se a comunicação em massa (um–para–muitos), em que poucos veículos concentram o poder midiático e, com ele, particular capacidade de influência sobre a sociedade.24. As transformações das campanhas eleitorais no novo paradigma comunicacional, que é o da comunicação em rede (muitos–para–muitos), são inquestionáveis. A expansão do uso eleitoral das redes sociais amplificou a divulgação de mensagens por candidatas e candidatos de forma exponencial.25. Esse fator, em geral benéfico ao debate democrático, deve também ser levado em conta para se aferir a ocorrência de ilícitos eleitorais. A jurisdição eleitoral deve acompanhar a realidade fenomênica, de modo a aplicar corretamente as regras eleitorais no mundo digital.26. Nesse cenário, o TSE reconheceu que a internet constitui meio de comunicação para fins de apuração de abuso de poder conforme a legislação eleitoral (RO–El nº 0603975–98, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJE de 10/12/2021).27. Além disso, firmou entendimento no sentido de que "o uso de aplicações digitais de mensagens instantâneas, visando promover disparos em massa, contendo desinformação e inverdades em prejuízo de adversários e em benefício de candidato, pode configurar abuso de poder econômico e/ou uso indevido dos meios de comunicação social para os fins do art. 22, caput e XIV, da LC 64/90" (AIJEs nº 0601986–80 e nº 0601771–28, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJE de 22/08/2022).28. Os precedentes repelem a possibilidade de que campanhas se refugiem na internet para burlar restrições legais e para fraudar a finalidade precípua de proteção à isonomia, à normalidade, à legitimidade eleitoral, à liberdade do voto e à moralidade pública.29. O financiamento de fake news voltado para isolar usuários em bolhas, bem como a monetização de conteúdos que as retroalimentam, são algumas formas de interseção entre o uso indevido de meios de comunicação e o abuso de poder econômico nas redes. Mas não são as únicas.30. Desde que se pretenda discutir ofensa a esses bens jurídicos, o núcleo fático do abuso de poder econômico e midiático pode recair sobre outras condutas tipificadas na legislação, inclusive as vedações em matéria de propaganda eleitoral.31. A realização de propaganda paga na internet é, em regra, vedada. A exceção é feita ao impulsionamento contratado diretamente com o provedor da aplicação, que é lícito (art. 57–C, § 3º, da Lei nº 9.504/97).32. A priorização paga de conteúdo consiste na contratação de anúncios para destacar links dentre os resultados de plataformas de pesquisa na internet. O serviço prestado oferece o conteúdo impulsionado antes dos resultados orgânicos da busca, identificando–o como anúncio. Mas é decisão da pessoa usuária acessá–lo ou não.33. Desde 2017, a priorização de conteúdo em resultados de busca é expressamente prevista como forma lícita de impulsionamento pago (art. 26, § 2º, da Lei nº 9.504/1997).34. A jurisprudência do TSE se ocupa de conciliar o uso legítimo da contratação de impulsionamento com a circulação democrática de informações na internet. Precedentes indicam que a priorização paga de resultados pode ser usada para chamar a atenção do eleitorado, desde que: a) para conferir destaque positivo a determinada candidatura; b) por iniciativa de candidatas, candidatos, partidos, federações e coligações; e c) o conteúdo seja identificado como anúncio pago.35. Não é direito da pessoa usuária encontrar em suas pesquisas apenas resultados que a agradam. A circulação livre de informações é ameaçada por bolhas que, de forma circular, consomem e financiam exclusivamente conteúdos moldados às preferências de seus componentes. Não é função de uma ferramenta de busca satisfazer vieses desse tipo.36. O funcionamento de algoritmos – responsáveis, entre outras coisas, por organizar resultados de busca por ordem de relevância – se tornou tema de grande importância para a democracia na era digital. No caso dos autos, porém, não foi apontado comportamento irregular à empresa que fornece as ferramentas tecnológicas em questão.37. A premissa, portanto, é que as ferramentas tecnológicas (de pesquisa e de priorização de conteúdo) foram oferecidas pela empresa em iguais condições a todas as campanhas. A conclusão pela ocorrência de fatos que preencham o núcleo do abuso de poder, na espécie, depende de demonstrar que os investigados desvirtuaram seu uso e lograram manipular os resultados de busca.38. A gravidade é elemento típico das práticas abusivas, que se desdobra em um aspecto qualitativo (alto grau de reprovabilidade da conduta) e outro quantitativo (significativa repercussão em um determinado pleito). Seu exame exige a análise contextualizada da conduta, que deve ser avaliada conforme as circunstâncias da prática, a posição das pessoas envolvidas e a magnitude da disputa.39. O cenário descrito na petição inicial é o de dominância dos conteúdos acessados a partir de anúncios pagos pelos investigados, com tal intensidade que teriam dificultado e, até mesmo, impedido o acesso a fontes de informações contrapostas. Ao se analisar a ofensa à igualdade de chances, ao direito à informação e à livre formação do voto, é pertinente avaliar o uso da ferramenta de priorização no contexto específico da disputa.40. Não se trata de transformar o candidato investigante em investigado, mas, sim, de se compreender os padrões de uso da ferramenta, para somente então indagar se houve uso anormal com impacto sobre a qualidade e a variedade da informação disponibilizada ao eleitorado.Fixação da moldura fática.41. A narrativa que embasa a ação sugere a ocorrência de comportamento anormal da ferramenta Google Ads, por força do qual a contratação de um anúncio pelos investigantes estaria levando à ocultação de outros "conteúdos eleitoralmente indesejáveis".42. Não foi deduzida alegação de falha ou vício na programação do algoritmo utilizado na priorização paga de conteúdo.43. Os autores tampouco comprovaram que resultados desfavoráveis ao primeiro investigado teriam sido deslocados para a segunda página da busca. Por sua vez, os investigados apresentaram capturas de tela que refutaram essa afirmação.44. As palavras–chave selecionadas associam o nome do primeiro investigado ou de seu partido a outros termos que consideram possíveis padrões de busca pelo público–alvo. Essa seleção é própria à finalidade do serviço contratado, dela não decorrendo conclusão de que o eleitorado está sendo ludibriado pela visualização do anúncio.45. As alegações dos investigantes no sentido de que o anúncio leva a site contendo "informações distorcidas" não ultrapassam o campo da opinião e da divergência política.46. Restou comprovado que o anúncio foi exibido mais de 5 milhões de vezes e mereceu 480.313 cliques. A "taxa de cliques" ficou em 9,15%, o que demonstra que a exibição do anúncio não impediu ou dificultou o acesso a outros conteúdos.47. Os investigados gastaram R$ 608.964,61 com o anúncio, ao custo médio por clique de R$ 1,27. Esses gastos se mostraram inteiramente compatíveis com o padrão das duas principais candidaturas presidenciais nas Eleições 2022. No total, os investigados aplicaram R$ 22.792.500,00 em publicidade via Google Ads, e, os investigantes, R$ 28.658.500,00.48. As variações detectadas, como os números de anúncios e os períodos de maior uso da ferramenta, sinalizam estratégias lícitas de campanha. Nota–se, inclusive, que os investigados distribuíram os recursos de forma mais constante ao longo do período eleitoral, e fizeram mais anúncios, o que denota maior diluição dos recursos aplicados na ferramenta.49. Descabe analisar novo e autônomo indício de anúncio irregular, pinçado pelos investigantes dos documentos apresentados pela Google e que foram produzidos com a finalidade de permitir a compreensão do contexto geral em que foi publicado o anúncio denunciado na petição inicial.50. Especificamente no que diz respeito ao anúncio questionado nesta AIJE, a Corte declarou sua licitude, por unanimidade (Rep nº 0601291–11, Rel. Min. Maria Claudia Bucchianeri, publicado em sessão de 19/12/2022).Subsunção dos fatos às premissas de julgamento51. A "prova robusta", necessária para a condenação em AIJE, equivale ao parâmetro da prova "clara e convincente" (clear and convincing evidence).52. A tríade para apuração do abuso – conduta, reprovabilidade e repercussão – se perfaz diante de: a) prova de condutas que constituem o núcleo da causa de pedir; e b) elementos objetivos que autorizem: b.1) estabelecer um juízo de valor negativo a seu respeito, de modo a afirmar que são dotadas de alta reprovabilidade (gravidade qualitativa); e b.2) inferir com necessária segurança que essas condutas foram nocivas ao ambiente eleitoral (gravidade quantitativa).53. Na hipótese, está demonstrado que a contratação da campanha "Lula Inocente" via Google Ads observou o uso normal da ferramenta, pois:53.1 os gastos e a dinâmica de interação se mostraram perfeitamente compatíveis com o contexto das duas principais candidaturas que disputaram a eleição presidencial;53.2 as palavras–chave selecionadas utilizaram o nome do candidato ou do partido, associados a termos que visivelmente se conectam aos temas que os investigados tinham em mira, sendo legítima a estratégia de conferir destaque à sua visão sobre esses temas; e53.3 os anúncios não trouxeram "dificuldade ou impedimento" ao acesso a outras fontes sobre o tema de pesquisa, quer porque ausente prova (ou alegação) de funcionamento anômalo do algoritmo, quer porque os investigados tiveram o zelo de demonstrar que resultados orgânicos continuavam a ser exibidos de forma farta em relação ao anúncio.54. Além disso, o conteúdo a que se chega por meio do anúncio se provou lícito.55. Ausente a prova da prática das condutas que compõem o núcleo fático da causa de pedir, fica prejudicado o exame da gravidade.56. Conclui–se pela não configuração do abuso de poder econômico ou do uso indevido dos meios de comunicação.III. Dispositivo57. Preliminar de ilegitimidade passiva da Coligação Brasil da Esperança acolhida, com extinção parcial do processo sem resolução do mérito.58. Requerimento de desentranhamento de provas indeferido.59. Pedido julgado improcedente em relação aos candidatos investigados.