Jurisprudência TSE 060121232 de 22 de fevereiro de 2024
Publicado por Tribunal Superior Eleitoral
Relator(a)
Min. Benedito Gonçalves
Data de Julgamento
19/10/2023
Decisão
Fixação de tese no julgamento conjunto das AIJES nº 060121232 e nº 060166527Retomado o julgamento, o Tribunal, por unanimidade, nos termos do voto do Ministro Relator, fixou a seguinte tese para as eleições 2024 e seguintes:"Somente é lícito à pessoa ocupante de cargos de Prefeito, Governador e Presidente da República fazer uso de cômodo da residência oficial para realizar e transmitir live eleitoral, se: a) tratar-se de ambiente neutro, desprovido de símbolos, insígnias, objetos, decoração ou outros elementos associados ao Poder Público ou ao cargo ocupado; b) a participação for restrita à pessoa detentora do cargo; c) o conteúdo divulgado se referir exclusivamente à sua candidatura; d) não forem utilizados recursos materiais e serviços públicos, nem aproveitados servidoras, servidores, empregadas e empregados da Administração Pública direta e indireta; e houver devido registro, na prestação de contas, de todos os gastos efetuados e das doações estimáveis relativas à live eleitoral, inclusive relativos a recursos e serviços de acessibilidade." E, por maioria, rejeitou a proposta de fixação de tese sobre a aplicação de multa por conduta vedada em Ação de Investigação Judicial Eleitoral, nos termos dos votos proferidos, vencido o Ministro Benedito Gonçalves (Relator).Acompanharam o Relator, na fixação da primeira tese, os Ministros Raul Araújo, Floriano de Azevedo Marques, André Ramos Tavares, Cármen Lúcia, Nunes Marques e Alexandre de Moraes (Presidente).Formaram a divergência, na rejeição da segunda tese, os Ministros Raul Araújo, Floriano de Azevedo Marques, André Ramos Tavares, Cármen Lúcia, Nunes Marques e Alexandre de Moraes (Presidente).Composição: Ministros Alexandre de Moraes (Presidente), Cármen Lúcia, Nunes Marques, Benedito Gonçalves, Raul Araújo, Floriano de Azevedo Marques e André Ramos Tavares.
Ementa
AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL. ELEIÇÕES 2022. ELEIÇÃO PRESIDENCIAL. CANDIDATO À REELEIÇÃO. LIVE SEMANAL. DIVULGAÇÃO DE ATOS DE GOVERNO. ALTERAÇÃO DE FINALIDADE. ANTECIPAÇÃO. ANÚNCIO DE LIVES DIÁRIAS. PROMOÇÃO DE CANDIDATURAS. ATO PÚBLICO DE CAMPANHA.PALÁCIO DA ALVORADA. BEM PÚBLICO. ESPAÇO NÃO ACESSÍVEL A OUTRAS CANDIDATURAS. PARTICIPAÇÃO DE CANDIDATO A GOVERNADOR. BIBLIOTECA. SIMBOLISMO. DESVIO ELEITORAL. USO INDEVIDO. ART. 73, I, LEI Nº 9.504/1997. VIOLAÇÃO OBJETIVA.SERVIDORA PÚBLICA. INTÉRPRETE DE LIBRAS. TRABALHO VOLUNTÁRIO. AUSÊNCIA DE REGISTRO CONTÁBIL. OMISSÃO DE DOAÇÃO ESTIMÁVEL. INDÍCIO. ART. 73, III, LEI Nº 9.504/1997. NÃO CONFIGURAÇÃO.TUTELA INIBITÓRIA. REPERCUSSÃO MITIGADA. DESCUMPRIMENTO NÃO COMPROVADO. AUSÊNCIA DE GRAVIDADE. ABUSO DE PODER POLÍTICO NÃO CONFIGURADO.IMPROCEDÊNCIA DOS PEDIDOS. FIXAÇÃO DE TESE PROSPECTIVA.1. Trata–se de Ação de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE) destinada a apurar a ocorrência de abuso de poder político, decorrente do alegado uso dos Palácios da Alvorada e do Planalto, bens públicos colocados à disposição do então Presidente da República, em proveito de sua candidatura e das de terceiros nas Eleições 2022.2. Durante a live realizada em 21/09/2022, uma quarta–feira, na biblioteca do Palácio da Alvorada, o primeiro investigado anunciou que passaria a fazer lives diárias com finalidade eleitoral e pediu votos para si e para candidatos aos cargos de governador e senador.3. Na hipótese, o autor alega que houve desvio de finalidade eleitoreiro da live tradicionalmente realizada às quintas–feiras pelo ex–Presidente da República, uma vez que bens e serviços públicos e prerrogativas do cargo teriam sido usados em favor de sua candidatura à reeleição. Afirma–se que o primeiro investigado antecipou a live e anunciou sua veiculação diária, tirando proveito da audiência atraída pela divulgação de atos de gestão, e passou a fustigá–la com propaganda eleitoral, alcançando ampla divulgação nas redes.4. Em contrapartida, os investigados defendem, com base no art. 73, § 2º da Lei nº 9.504/1997, a regularidade da utilização do Palácio da Alvorada, inclusive de sua biblioteca, para realizar lives eleitorais transmitidas nas redes pessoais do candidato.5. Sustentam, também, que a intérprete de libras, servidora pública do Ministério da Educação, atuou de forma voluntária na live, prestando serviço de valor módico, o que, conforme o art. 27 da Lei nº 9.504/1997, dispensaria contabilização na prestação de contas.I. MéritoPremissas de julgamento6. O abuso de poder político se caracteriza como o ato de agente público (vinculado à Administração ou detentor de mandato eletivo) praticado com desvio de finalidade eleitoreira, que atinge bens e serviços públicos ou prerrogativas do cargo ocupado, em prejuízo à isonomia entre candidaturas.7. A gravidade é elemento típico das práticas abusivas, que se desdobra em um aspecto qualitativo (alto grau de reprovabilidade da conduta) e outro quantitativo (significativa repercussão em um determinado pleito). Seu exame exige a análise contextualizada da conduta, que deve ser avaliada conforme as circunstâncias da prática, a posição das pessoas envolvidas e a magnitude da disputa.8. O núcleo fático do abuso de poder político pode recair sobre condutas vedadas aos agentes públicos, cuja tipificação se assenta em presunção legal de que as práticas descritas são "tendentes a afetar a igualdade de oportunidades entre os candidatos nos pleitos eleitorais" (art. 73, caput, da Lei nº 9.504/1997).9. A cessão ou uso de bens móveis ou imóveis da administração pública em benefício de campanhas eleitorais são, em regra, vedados (art. 73, I, Lei nº 9.504/97).10. A jurisprudência do TSE, interpretando a regra com atenção à finalidade de assegurar a igualdade de condições entre as candidaturas, permite a captura de imagens de bens públicos para serem utilizadas na propaganda, desde que realizada em espaços que sejam acessíveis a todas as pessoas. Veda–se, assim, que os agentes públicos se beneficiem da prerrogativa de adentrar aos locais em razão do cargo e lá realizar gravações, conforme precedente das Eleições 2014 que resultou na aplicação de multa por conduta vedada à candidata à reeleição para o cargo de Presidente.11. Há, ainda, exceção legal em favor dos Chefes do Executivo candidatos à reeleição, que podem utilizar "de suas residências oficiais para realização de contatos, encontros e reuniões pertinentes à própria campanha, desde que não tenham caráter de ato público" (art. 73, § 2 º, Lei nº 9.504/1997).12. Os atos de campanha que a lei permite que sejam realizados na residência oficial são eminentemente voltados para arranjos internos, permitindo–se ao Chefe do Executivo receber interlocutores, reservadamente, com o objetivo de traçar estratégias e alianças políticas. Não se permite a realização de atos públicos, em que o candidato se apresente ao eleitorado com o objetivo de divulgar propaganda. Além disso, a sede do governo não pode ser usada para fins eleitorais.13. A vedação de cessão de servidor público para prestar serviços à campanha durante o horário de expediente normal (art. 73, III, Lei nº 9.504/1997) deve ser interpretada sopesando–se a moralidade pública e a liberdade de manifestação política. Desse modo, "para a incidência da vedação [...], é necessário que se verifique o uso efetivo do aparato estatal em prol de determinada campanha", inexistindo restrição ao "mero engajamento eleitoral de servidor público, fora do exercício das atribuições do cargo" (AgInt em AI nº 126–22, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, DJE de 16/08/2019).14. As transformações das campanhas eleitorais no novo paradigma comunicacional, que é o da comunicação em rede (muitos–para–muitos), são inquestionáveis. A expansão do uso eleitoral das redes sociais amplificou a divulgação de mensagens por candidatas e candidatos de forma exponencial. Esse fator, em geral benéfico ao debate democrático, deve também ser levado em conta para se aferir a ocorrência de ilícitos eleitorais.15. Essa premissa contextual não é novidade, pois foi assentada em precedente paradigmático das Eleições 2018, no qual se reconheceu que a internet constitui meio de comunicação para fins de apuração de abuso de poder conforme a legislação eleitoral (RO–El nº 0603975–98, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJE de 10/12/2021).16. O precedente repele a possibilidade de que campanhas se refugiem na internet para burlar restrições legais e para fraudar a finalidade precípua de proteção à isonomia, à normalidade, à legitimidade eleitoral, à liberdade do voto e à moralidade pública. Assim, ao preparar e realizar atos virtuais de campanha, agentes públicos devem necessariamente respeitar as vedações impostas ao art. 73 da Lei nº 9.504/1997.17. As lives eleitorais consistem em ato de campanha destinado a atrair eleitoras e eleitores e potencializar o alcance da propaganda, com ganhos de audiência e redução de custos. Considerando tanto o uso do meio de comunicação que utilizam quanto a finalidade do ato, não há como negar que possuem caráter público.18. Nas Eleições 2014, o TSE havia considerado lícito "o uso da residência oficial e de um computador para a realização de ¿bate–papo¿ virtual, por meio de ferramenta (face to face) de página privada do Facebook". O raciocínio então adotado foi o de que, se o perfil na rede social é privado, comunicações feitas a partir dele também seriam. Considerou–se assim que "a candidata à reeleição não pode controlar a repercussão do seu ¿bate papo¿ virtual com seus ¿amigos¿ de rede sociais" (RP nº 848–90, Rel. Min. Tarcisio Vieira de Carvalho Neto, DJE de 01/10/2014).19. As circunstâncias descritas no julgado não se amoldam à realidade das lives eleitorais, atos que se valem de meio de comunicação de alcance massivo, em um mundo em que "amigos" deram lugar a "seguidores". A projeção da mensagem em ambiente público é da essência da live. A repercussão instantânea sobre um elevado número de pessoas, efeito que se designa por "viralização", é um objetivo buscado em uma live, e não um resultado acidental de um bate–papo.20. Julgados relativos às Eleições 2020 demonstram, de forma consistente, que os meios de campanha virtuais devem observar as mesmas regras aplicáveis a meios analógicos. Permitiu–se, por isso, realizar evento de arrecadação, transmitido pela internet, com apresentação artística, por se tratar de prática albergada pelo art. 23, § 4º, V, da Lei nº 9.504/97 (TutCautAnt nº 0601600–03, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJE de 05/11/2020). De outro lado, puniu–se a realização de "showmício" transmitido pela internet ("livemício"), por violar o art. 39, § 7º, da Lei n° 9.504/97 (AgInt em REspEl nº 0600518–82, Rel. Min. Benedito Gonçalves, DJE de 10/03/2022).21. Em julgado atinente às Eleições 2022, assinalou–se que o reconhecimento do desvio de finalidade eleitoreiro de bens, serviços e prerrogativas da Presidência da República, para fins de configuração do abuso de poder político, não depende da comprovação de emprego de recursos patrimoniais elevados. A exploração eleitoral de símbolos do Poder Público afeta bens impassíveis de serem estimados financeiramente e transmite sentidos perceptíveis pelo eleitorado que podem redundar em quebra de isonomia (AIJE nº 0600814–85, Rel. Min. Benedito Gonçalves, DJE de 01/08/2023).22. Conclui–se, assim, que:22.1 Lives eleitorais, assim entendidas como transmissões em meio digital realizadas por candidatas e candidatos ou seus apoiadores com o objetivo de promover candidaturas e conquistar a preferência do eleitorado, mesmo sem pedido explícito de voto, constituem atos de campanha eleitoral de caráter público;22.2 Aplica–se às lives eleitorais a regra geral de proibição do uso de bens públicos, móveis e imóveis, e de cessão de servidores públicos em horário de expediente, seja para sua realização, seja para sua transmissão (art. 73, I e III, Lei nº 9.504/1997);22.3 A exceção legal que torna lícito o uso da residência oficial por Chefes do Executivo refere–se a atos de caráter reservado, como contatos, encontros e reuniões, e, ainda, restritos à sua própria campanha, não se estendendo às lives eleitorais ou a outros atos de caráter público em favor da candidatura do agente público ou de terceiros (art. 73, § 2º, Lei nº 9.504/1997);22.4 Estendem–se às lives eleitorais e às entrevistas transmitidas por internet, rádio e televisão tanto a permissão jurisprudencial para a gravação de propaganda eleitoral em bens públicos em espaços acessíveis a qualquer pessoa quanto a vedação de se utilizar espaços que os agentes públicos somente acessam em decorrência de prerrogativas do cargo;22.5 Os bens simbólicos associados ao cargo ocupado por agentes públicos integram o patrimônio público imaterial, cujo vulto não pode ser reduzido por argumentos de ordem pecuniária, sendo vedada sua exibição em lives eleitorais;22.6 Servidoras e servidores públicos, durante seu horário de expediente, não podem prestar serviços destinados à realização ou transmissão de lives eleitorais.II. Fixação da moldura fática23. O vídeo contendo a live, juntado aos autos, mostra o primeiro investigado na biblioteca do Palácio da Alvorada. Ele informa local, dia e horário da transmissão (Brasília, 21/09/2022, 19h00). O candidato diz que se faz acompanhar de intérprete de libras, apresentada como "Elizângela". A veiculação dura aproximadamente 30 minutos.24. O candidato declara que que "não é natural" realizar a live na quarta–feira, mas que, aproximando–se a "reta final" da disputa, e havendo "muita coisa em jogo", tentará realizar lives todos os dias, dedicando "pelo menos metade" do tempo para promover candidaturas de deputados federais e senadores, com o objetivo de repetir o sucesso de 2018 e formar uma grande bancada. Há uma clara orientação dirigida à militância, sobre como deve proceder nas eleições estaduais para garantir vitória a candidatos alinhados com o primeiro investigado.25. A fala do então Presidente da República repisa temas de sua pauta de campanha e abarca realizações de seu governo, amarrando os temas por "comparações" com denominados "governos de esquerda", sendo indicado pelo então candidato que isso serviria para avaliar se o Brasil deveria continuar no caminho que está ou mudar. Pontualmente, o primeiro investigado apresenta críticas ao seu principal adversário no pleito.26. A partir de 14min17seg, tem início o que o próprio candidato denomina "horário eleitoral gratuito", momento em que passa a pedir votos para aliados que disputam o cargo de governador e vagas no Senado e na Câmara dos Deputados em todo o país.27. Faltando três minutos para o término da live, o primeiro investigado convida candidato ao cargo de governador de Goiás, por ele apoiado, para participar da live, dando–lhe a palavra. O candidato exalta seu desempenho na campanha, enfatiza seu alinhamento com o então Presidente da República e convida a "todos os goianos" para participarem de dois atos de campanha no final de semana seguinte.28. Antes de encerrar a transmissão, o primeiro investigado reforça a proposta de fazer lives diárias, informando que a próxima ocorreria na sexta–feira, já que na quinta–feira estaria no Pará e no Amazonas para realizar comícios e encontros reservados.29. Quanto ao conteúdo, não há dúvidas de que foi veiculada mensagem de cunho eleitoral, pois, na iminência do primeiro turno das eleições: a) a intensificação das lives foi anunciada como estratégia para garantir uma base de apoio robusta durante o almejado segundo mandato do ex–Presidente da República; b) o candidato à reeleição deu orientações diretas à sua militância sobre como escolher estrategicamente candidaturas nos estados, abordando inclusive o "voto útil"; e c) houve intensa exaltação a realizações do governo e críticas ao principal adversário do primeiro investigado, feitas com deliberado propósito comparativo; d) houve divulgação de apoio a candidaturas estaduais e pedido de voto; e) houve participação ativa de um candidato ao cargo de governador.30. Quanto ao alcance, o candidato anuncia que, somadas as plataformas Facebook, Instagram, TikTok e Kwai, a audiência ao vivo atingiu aproximadamente 100.000 pessoas, avaliando–a como "excelente". Além disso, os prints, registrados 17 horas após as transmissões e trazidos na petição inicial, indicam 805.613 visualizações no Instagram, 308.000 no Facebook e 253.521 no YouTube. Esses números não foram contestados pelos investigados.31. A correlação entre a atividade semanal do então Presidente nas redes sociais, mantida desde 2019, e a transmissão objeto desta AIJE é evidenciada no conteúdo albergado no canal do YouTube e no perfil de Facebook do primeiro investigado, que usam as legendas "Live Semanal – 21/09/2022 – PR Jair Bolsonaro" e "Pronunciamento à nação". Além disso, o próprio candidato justificou a realização da live na quarta–feira, mesmo que isso não fosse "natural".32. O uso da biblioteca do Palácio da Alvorada, já detectado no momento em que se concedeu a liminar, à vista das características ostensivas desse espaço, foi expressamente admitido pelos investigados na contestação.33. Por outro lado, a instrução afastou, de forma cabal, a alegação do uso de serviços de intérprete de libras custeados pelo Erário. A prova documental e testemunhal demonstrou que a atuação da intérprete nas lives: a) remonta a 2018 e se originou de relação entre a intérprete e a e esposa do primeiro investigado; b) não tem relação com cargo ocupado pela servidora no MEC, entre março de 2022 e janeiro de 2023; c) não foi custeada com recursos públicos despendidos na contratação de intérpretes de libras para eventos da Presidência da República; d) era compatível com seu horário de trabalho no MEC.34. De se notar, contudo, que a prova dos autos resultou em indícios de omissão de doações estimáveis à campanha do primeiro investigado, tendo em vista as informações prestadas pela testemunha no sentido de que: a) nunca foi remunerada por esse serviço; b) nunca assinou recibo relativo à doação do serviço para a campanha; c) nunca foi orientada pelos beneficiários de que era preciso registrar o citado "trabalho voluntário" como doação estimável.III. Subsunção dos fatos às premissas de julgamento35. A "prova robusta", necessária para a condenação em AIJE, equivale ao parâmetro da prova "clara e convincente" (clear and convincing evidence).36. A tríade para apuração do abuso – conduta, reprovabilidade e repercussão – se perfaz diante de: a) prova de condutas que constituem o núcleo da causa de pedir; e b) elementos objetivos que autorizem: b.1) estabelecer um juízo de valor negativo a seu respeito, de modo a afirmar que são dotadas de alta reprovabilidade (gravidade qualitativa), e b.2) inferir com necessária segurança que essas condutas foram nocivas ao ambiente eleitoral (gravidade quantitativa).37. Na hipótese, está caracterizada a realização de ato público de campanha, consistente em live eleitoral em benefício da campanha dos investigados e de terceiros, realizada em 21/09/2022, com transmissão em canais e redes sociais do então Presidente da República.38. Do ato, participaram tanto o primeiro investigado quanto um candidato ao cargo de governador. A mensagem de mobilização para a reta final da campanha e para a escolha de candidaturas nos estados foi difundida para centenas de milhares de apoiadores.39. O uso da biblioteca do Palácio da Alvorada, no caso dos autos, não se mostrou um dado trivial ou de menor importância. Seu verdadeiro impacto está na naturalização do uso de um espaço institucional da Presidência da República para dirigir a seguidores pedido de apoio e voto a candidaturas alinhadas com o pretendente à reeleição.40. Conforme lições de semiótica, os seres humanos são naturalmente equipados para compreender mensagens não literais. Na dimensão icônica da mensagem, qualidades visíveis sugerem qualidades abstratas e associações de ideias, por comparação, a partir de uma primeira impressão. Nessa linha, uma coisa lembra outra, que lembra uma terceira.41. Sob essa ótica, a live de 21/09/2022 colocou em contraste o recinto histórico e institucional da Presidência da República, que está acima das disputas partidárias, e uma atuação eleitoral ostensiva dos participantes, com exibição de santinhos, pedido de votos e participação de candidato regional. Há um estranhamento que é catalisador de mensagens bastante relevantes, como o da posição elevada do primeiro investigado e dos candidatos por ele apoiados, em detrimento de seus concorrentes.42. O ato, público, mira a futura eleição, mas é realizado com os participantes muito bem alojados na residência presidencial. Isso naturaliza que estejam ocupando esse espaço. A suntuosidade da biblioteca, que, despercebida pelo ex–Presidente e seu convidado, nada mais seria que um "pano de fundo", força um excesso de familiaridade do candidato à reeleição e de seus aliados com a posição de poder do Presidente da República. No limite, a ideia é de confusão entre o público e o privado; entre o institucional e o eleitoral.43. Sopesados os fatos incontroversos, notórios e cabalmente comprovados, bem como as inferências objetivas, é possível concluir pela ocorrência de cessão indevida do Palácio da Alvorada, em 21/09/2022, em favor da campanha dos investigados e de terceiros, violando o art. 73, I, da Lei nº 9.504/1997.44. A exceção legal (art. 73, § 2º, Lei nº 9.504/1997) e os precedentes que excluem a ilicitude dessa cessão não se aplicam ao caso, pois:44.1 não se tratou de ato reservado de campanha;44.2 não se tratou de ato em exclusivo benefício do candidato à reeleição, tampouco com a exclusiva participação deste;44.3 o espaço não era acessível a outros candidatos, o que projeta significativa vantagem para os beneficiários da live de 21/09/2022 em relação a seus adversários; e44.4 não houve simples "captação de imagens" para a propaganda eleitoral, mas uso de recinto especial do Palácio da Alvorada como o próprio ambiente em que os participantes da live se alojaram, o que comunica sentidos de maior prestígio, projeção e proximidade ao poder presidencial, algo inacessível a adversários.45. A conduta vedada não atingiu a gravidade exigida para a configuração do abuso de poder político, pois:45.1 a reprovabilidade do ato é apenas moderada, já que:a) o uso ilícito do bem público ocorreu de forma pontual, restrita a uma transmissão, não se comprovando o uso de outros bens e serviços públicos para a produção da live de 21/09/2022; eb) a despeito de sua insatisfação com a decisão liminar proferida nos autos, o primeiro investigado atendeu satisfatoriamente à ordem, deixando de fazer uso da biblioteca do Palácio da Alvorada para a realização de lives eleitorais;45.2 a repercussão no contexto da eleição foi contida pela tutela inibitória, impedindo que o intento de realização de lives diárias transmitidas da residência oficial ou da sede do governo, anunciado em 21/09/2022, viesse a se concretizar.46. A contenção de danos ao processo eleitoral, no caso dos autos, é resultado da medida inibitória aplicada, o que não torna banal o fato discutido nos autos. A preservação da integridade de símbolos republicanos, que são detidos sempre provisoriamente por mandatários eleitos, é um elemento de valor substancial para a democracia.47. A necessidade de atuação, no caso concreto, se confirmou ante a comoção gerada pela concessão da liminar. Foi de fato necessário estancar a ideia de que a biblioteca do Palácio da Alvorada estivesse à disposição das lives eleitorais diárias, com ampla publicidade, em benefício de terceiros e, até mesmo, com a presença de candidatos convidados. A pronta atuação do TSE foi suficiente, no caso concreto, para inibir os efeitos anti–isonômicos da conduta.48. Sob outro ângulo, o autor não apresentou argumentos suficientes para inaugurar o debate jurídico visando definir se a habitual e ostensiva priorização do uso de contas pessoais do Presidente da República para divulgar atos oficiais permite caracterizá–las como ferramenta de governo. Esse seria o ponto de partida para tratar da segunda imputação de abuso de poder político, deduzida, de forma autônoma, com base no alegado desvirtuamento drástico da transmissão realizada em 21/09/2022.49. Assim, apesar de se constatar que a live eleitoral foi transmitida nos canais, dia da semana e horário tradicionalmente reservados pelo ex–Presidente da República para comunicar–se com a população ao longo do mandato, não é possível concluir, no atual estágio de compreensão da matéria, que lhe fosse vedado alterar a destinação do programa para atender a seus interesses eleitorais.50. Conclui–se pela configuração da conduta vedada pelo art. 73, I, da Lei nº 9.504/1997 e pela não configuração do abuso de poder político.IV. Tese prospectiva51. Em vista do amadurecimento das questões debatidas no processo, fixa–se tese, para aplicação a partir das Eleições 2024.52. A tese se destina a refinar a interpretação do art. 73, §2º, da Lei nº 9.504/1997, levando em consideração o prioritário resguardo à dimensão simbólica de bens públicos imateriais nos quais se apoia a continuidade e a impessoalidade das instituições. Ao mesmo tempo, acomoda–se a possibilidade de realização de lives eleitorais em circunstâncias que assegurem a preservação da finalidade da norma.V. Dispositivo53. Pedidos julgados improcedentes.54. Fixação de tese, com aplicação a partir das Eleições 2024, no sentido de que: "Somente é lícito à pessoa ocupante de cargos de Prefeito, Governador e Presidente da República fazer uso de cômodo da residência oficial para realizar e transmitir live eleitoral, se: a) tratar–se de ambiente neutro, desprovido de símbolos, insígnias, objetos, decoração ou outros elementos associados ao Poder Público ou ao cargo ocupado; b) a participação for restrita à pessoa detentora do cargo; c) o conteúdo divulgado se referir exclusivamente à sua candidatura; d) não forem utilizados recursos materiais e serviços públicos, nem aproveitados servidoras, servidores, empregadas e empregados da Administração Pública direta e indireta; e) houver devido registro, na prestação de contas, de todos os gastos efetuados e das doações estimáveis relativas à live eleitoral, inclusive relativos a recursos e serviços de acessibilidade.".55. Compartilhamento de documentos com o Relator da PCE nº 0601079–87 e a Relatora da PCE nº 0601081–57, para competente exame dos indícios de omissão de registro de doação estimável.