Jurisprudência TSE 060098627 de 20 de marco de 2024
Publicado por Tribunal Superior Eleitoral
Relator(a)
Min. Benedito Gonçalves
Data de Julgamento
31/10/2023
Decisão
(Julgamento conjunto das AIJE-s nº 060097243 e nº 060098627; e da RepEsp nº 060098457) O Tribunal, por unanimidade, rejeitou as preliminares e, no mérito, por maioria: a) julgou procedentes os pedidos formulados na Representação Especial, para condenar ambos os investigados pela prática das condutas vedadas, aplicando ao primeiro investigado, Jair Messias Bolsonaro, multa no valor de R$ 425.640,00 (quatrocentos e vinte e cinco mil seiscentos e quarenta reais) e ao segundo investigado, Walter Souza Braga Netto, multa no valor de R$ 212.820,00 (duzentos e doze mil oitocentos e vinte reais); b) julgou procedentes os pedidos formulados nas AIJEs para condenar Jair Messias Bolsonaro e Walter Souza Braga Netto pela prática de abuso de poder político e econômico nas Eleições 2022, declarando-lhes inelegíveis pelo período de 8 (oito) anos seguintes ao pleito de 2022; c) deixou de aplicar a cassação do registro de candidatura dos investigados, exclusivamente em virtude de a chapa beneficiária das condutas abusivas não ter sido eleita; d) determinou a comunicação imediata desta decisão à Secretaria da Corregedoria-Geral Eleitoral para que, independentemente da publicação do acórdão, promova a devida anotação no histórico dos investigados, no Cadastro Eleitoral, da hipótese de restrição à capacidade eleitoral passiva; e) e determinou a comunicação, também em caráter imediato: a) à Procuradoria-Geral Eleitoral, para análise de eventuais providências na esfera penal; e b) ao Tribunal de Contas da União, considerando-se o comprovado desvio de finalidade eleitoreira de bens, recursos e serviços públicos, nos termos do voto reajustado do Relator, vencido o Ministro Raul Araújo, que julgou improcedentes os pedidos das três ações e, vencido parcialmente, o Ministro Nunes Marques, que impôs ao representado, Jair Messias Bolsonaro, multa no valor de R$ 20.000,00 (vinte mil reais) por cada um dos eventos que aconteceram após as comemorações do Bicentenário da Independência, totalizando R$ 40.000,00 (quarenta mil reais), e afastou a aplicação de qualquer reprimenda ao representado Walter Souza Braga Netto. Acompanharam o Relator, os Ministros Floriano de Azevedo Marques, André Ramos Tavares, Cármen Lúcia e Alexandre de Moraes (Presidente).Composição: Ministros Alexandre de Moraes (Presidente), Cármen Lúcia, Nunes Marques, Benedito Gonçalves, Raul Araújo, Floriano de Azevedo Marques e André Ramos Tavares.
Ementa
AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO JUDICIAL ELEITORAL. ELEIÇÕES 2022. ELEIÇÃO PRESIDENCIAL. BICENTENÁRIO DA INDEPENDÊNCIA. COMEMORAÇÃO OFICIAL. DESVIO DE FINALIDADE ELEITOREIRO. BENS, RECURSOS E PRERROGATIVAS PÚBLICAS. USO EM FAVOR DE CANDIDATURA. APROPRIAÇÃO SIMBÓLICA. GRAVIDADE. ABUSO DE PODER POLÍTICO. ABUSO DE PODER ECONÔMICO. RESPONSABILIDADE. CHAPA NÃO ELEITA. PROCEDÊNCIA PARCIAL. INELEGIBILIDADE. 1. Trata–se de Ação de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE) destinada a apurar a ocorrência de abuso de poder político e econômico nas comemorações oficiais do Bicentenário da Independência em Brasília e no Rio de Janeiro. 2. Em 07/09/2022, o governo federal realizou desfile cívico–militar na Esplanada dos Ministérios, em Brasília. Na sequência, os investigados realizaram comício em trio elétrico em via transversal àquela em que performado o desfile. A TV Brasil transmitiu entrevista com o primeiro investigado, ainda no Palácio da Alvorada, e fez a cobertura completa do evento. 3. Na mesma data, no Rio de Janeiro, foram realizadas performances militares em Copacabana, em comemoração à data cívica. O primeiro investigado chegou à região ao final de motociata com seus apoiadores e se dirigiu a tribuna oficial de onde acompanhou salva de tiros de canhão. Em seguida, dirigiu–se para trio elétrico situado a alguns quarteirões e realizou novo comício. 4. Na hipótese, a autora alega os atos de campanha foram mesclados aos atos oficiais, fazendo com que todo o aparato público envolvido, incluindo bens móveis e imóveis e servidores da Administração Pública Federal, viesse a ser usado em benefício da campanha dos investigados. Afirma também que houve apropriação simbólica do evento, de forma deliberada, com o objetivo de que a data cívica fosse elevada a marco da "luta do bem contra o mal", mote que o primeiro investigado associava ao enfrentamento contra seu principal adversário no pleito. 5. Em contrapartida, os investigados defendem que houve "clara diferenciação, com bordas cirúrgicas limpas e delimitadas", entre os atos oficiais de comemoração do Bicentenário da Independência e os atos de campanha. Acrescem que todas as candidaturas poderiam, de igual forma, ter se valido da data cívica, sendo lícito que o primeiro investigado mobilizasse sua base política, construída ao longo de anos, nessa ocasião. I. Preliminares Preliminar de exigência de formação de litisconsórcio passivo necessário com a União (suscitada pelos investigados). 6. É pacífica a jurisprudência no sentido da impossibilidade de pessoas jurídicas figurarem no polo passivo da AIJE. Precedentes. 7. Não existe uma "relação jurídica incindível" entre a União e o Presidente da República a impor que o ente federado litigue, na AIJE, ao lado do candidato. Além da indevida mescla de interesses públicos e privados que deriva dessa proposta, seu acolhimento comprometeria, em definitivo, a celeridade e a economicidade, ao forçar a atuação processual de entes federados, autarquias, empresas públicas e fundações em toda e qualquer ação em que se apure finalidade eleitoral ilícita de atos praticados em nome do Poder Público. 8. Caso a União ou a Empresa Brasil de Comunicação entendesse que houve prejuízo ao patrimônio público em decorrência da determinação liminar para excluir de material produzido pela TV Brasil os trechos de promoção pessoal e eleitoral do primeiro investigado do registro, poderia atuar na condição de terceiro prejudicado. Contudo, nenhuma das pessoas jurídicas adotou medida voltada para assegurar a veiculação do material, o que torna patente que não vislumbraram esse tipo de prejuízo. 9. Preliminar rejeitada. Preliminar de ausência de formação de litisconsórcio passivo necessário com responsáveis por movimentos cívicos (suscitada pelos investigados). 10. Na linha da jurisprudência do TSE, a viabilidade da AIJE não depende da inclusão, no polo passivo, de pessoas apontadas como responsáveis pela conduta abusiva, sem prejuízo de que figurem como litisconsortes facultativos dos candidatos beneficiários. 11. No caso, os investigados selecionaram alguns movimentos cívicos, a partir de notícia de jornal, afirmando que se tratava de litisconsortes passivos necessários, sem nem mesmo buscar identificar as pessoas envolvidas. Denota–se o pouco interesse em que efetivamente pudessem ser citados antes do término do prazo decadencial. 12. A propositura desta ação se sustenta diante da narrativa plausível do desvio de finalidade das comemorações oficiais, atribuído aos investigados, em proveito de sua campanha. 13. Preliminar rejeitada. Preliminar de violação ao devido processo legal por suposta inobservância ao art. 96–B da Lei nº 9.504/1997 (suscitada pelos investigados). 14. O art. 96–B da Lei nº 9.504/1997 dispõe que "[s]erão reunidas para julgamento comum as ações eleitorais propostas por partes diversas sobre o mesmo fato, sendo competente para apreciá–las o juiz ou relator que tiver recebido a primeira". 15. A jurisprudência do TSE é no sentido de que a reunião de feitos não é obrigatória, cabendo à relatora ou ao relator, respeitada a harmonia entre os julgados e o princípio da economia processual, avaliar sua oportunidade e conveniência. Precedente. 16. O Pleno do STF assentou, em controle concentrado de constitucionalidade, que a aplicação do art. 96–B da Lei nº 9.504/1997 pode ser afastada "no caso concreto sempre que a celeridade, a duração razoável do processo (art. 5º, LXXVIII, da CF), o bom andamento da marcha processual, o contraditório, a ampla defesa (art. 5º, LV, da CF), a organicidade dos julgamentos e o relevante interesse público envolvido recomendarem a manutenção da separação" (ADI nº 5507, Rel. Min. Dias Toffoli, DJE de 03/10/2022). 17. Na hipótese dos autos, foi reconhecida a conexão entre quatro ações que versam sobre alegados desvios nas comemorações do Bicentenário da Independência. Foram praticados atos instrutórios comuns, nas situações em que essa providência se mostrou benéfica à instrução. 18. A instrução conjunta foi suficiente para que três ações ficassem maduras para julgamento. A quarta ação, que tem objeto mais amplo e maior número de investigados, e envolve discussão quanto à eventual responsabilidade de cada um deles pelas condutas imputadas, teve prosseguimento, com exame de questões processuais particulares, análise de requerimentos e produção de provas. 19. Os investigados não conseguiram descrever qualquer prejuízo que a sistemática tenha acarretado na presente AIJE. Ainda assim, nas alegações finais, insistem que se adote uma rígida "tramitação unificada". 20. A medida pretendida teria por único efeito prático postergar o julgamento das três ações inteiramente aptas para julgamento. A legitimidade ativa concorrente da AIJE foi concebida com vistas a melhor proteger os bens jurídicos eleitorais e não pode ser transformada em fonte de riscos lotéricos. 21. O art. 96–B da Lei nº 9.504/1997 não impõe a forma pela forma. Sua principal diretriz é a necessidade da prolação de decisões coerentes sobre os mesmos fatos e à luz das mesmas provas (julgamento secundum eventum probationis). Descabe invocar o dispositivo para produzir o resultado, ilógico, de fazer com que ações já plenamente instruídas e aptas para julgamento, à luz da controvérsia nelas posta, fiquem paralisadas. 22. Ausente demonstração de nulidade processual ou de efetivo prejuízo à defesa dos investigados, evidencia–se que o requerimento de retirada do feito de pauta, para "unificação da tramitação das ações", tem caráter meramente protelatório. 23. Preliminar rejeitada. 24. Indeferido o requerimento de retirada do feito da pauta de julgamento. Preliminar de cerceamento de defesa em função de indeferimento da oitiva de testemunhas (suscitada pelos investigados) 25. A invocação, genérica, de que a prova testemunhal é sempre cabível não é suficiente para assegurar o deferimento de qualquer requerimento desta natureza. Cabe à parte demonstrar a utilidade e a pertinência das provas que requer, o que deve ser feito em cotejo com aspectos relevantes da controvérsia. 26. O art. 454 do CPC elenca autoridades às quais se concede regime especial de inquirição como testemunhas. Não se trata de privilégio, mas de prerrogativa que atenta para a envergadura do cargo ocupado, a preservação da segurança pessoal e o não prejuízo do desempenho das funções públicas. 27. A aplicação do regime de oitiva de autoridades, mesmo com ajustes para acomodá–lo à celeridade própria das ações eleitorais, envolve organização complexa, com impactos sobre a marcha processual. Os incisos do art. 454 do CPC não podem se transformar em um catálogo de opções utilizado para retardar o trâmite da ação, à míngua de justificativa razoável e proporcional que demonstre a necessidade da oitiva. 28. Por isso, a indicação dessas autoridades como testemunhas deve se amparar em fatos relevantes que efetivamente dependam de seu particular conhecimento. Chega–se a essa conclusão por simples desdobramento da boa–fé objetiva, pois seria impensável que essas pessoas pudessem ser convocadas a testemunhar a respeito dos mais diversos aspectos de fatos comuns presenciados, em quaisquer ações, ao alvedrio de terceiros. 29. No caso, os investigados arrolaram como testemunhas um Ministro do TST, um Conselheiro do CNJ e o Embaixador do Cabo Verde. Alegou que pretendiam demonstrar que houve cisão do evento oficial e político em Brasília, e que a participação do segundo investigado foi episódica. 30. O ato oficial recebeu cobertura integral da TV Brasil, que se estende até o momento que o primeiro investigado deixa a tribuna de honra e, já sem a faixa presidencial, cumprimenta o público, enquanto se dirige para o local em que faria comício. A participação do segundo investigado também foi registrada em vídeo. Os investigados tiveram deferidos outros nove requerimentos de oitiva de testemunhas, inclusive o ex–Ministro Chefe da Casa Civil, o ex–Ministro da Defesa e o Governador do Distrito Federal. Há farta prova documental nos autos. 31. Os investigados não apontaram qualquer episódio relevante, não registrado em vídeo ou corroborado por outro meio de prova, que seria de especial conhecimento das autoridades vinculadas ao TST, ao CNJ e à República do Cabo Verde, que compareceram como meros convidados. Ademais, não caberia a tais autoridades emitir opinião sobre o evento, uma vez que testemunhas depõem sobre fatos. 32. As oitivas pretendidas estavam desconectadas das finalidades jurídicas da iniciativa probatória das partes. O indeferimento de prova impertinente, fadada a produzir efeitos protelatórios, não caracteriza cerceamento de defesa. 33. Preliminar indeferida. II. Mérito Premissas de julgamento 34. O abuso de poder político se caracteriza como o ato de agente público (vinculado à Administração ou detentor de mandato eletivo) praticado com desvio de finalidade eleitoreira, que atinge bens e serviços públicos ou prerrogativas do cargo ocupado, em prejuízo à isonomia entre candidaturas. 35. O núcleo fático do abuso de poder político pode recair sobre condutas vedadas aos agentes públicos, cuja tipificação se assenta em presunção legal de que as práticas descritas são "tendentes a afetar a igualdade de oportunidades entre os candidatos nos pleitos eleitorais" (art. 73, caput, da Lei nº 9.504/1997). 36. A cessão ou uso de bens móveis ou imóveis da administração pública em benefício de campanhas eleitorais vedados pelo art. 73, I, Lei nº 9.504/97, visa impedir que agentes públicos se beneficiem eleitoralmente da prerrogativa de acesso a espaços em função do cargo ocupado. Precedentes. 37. A vedação de cessão de servidor público para prestar serviços à campanha durante o horário de expediente normal (art. 73, III, Lei nº 9.504/1997) deve ser interpretada sopesando–se a moralidade pública e a liberdade de manifestação política. Desse modo, "para a incidência da vedação [...], é necessário que se verifique o uso efetivo do aparato estatal em prol de determinada campanha", inexistindo restrição ao "mero engajamento eleitoral de servidor público, fora do exercício das atribuições do cargo" (AgInt em AI nº 126–22, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, DJE de 16/08/2019). 38. Em julgado atinente às Eleições 2022, assinalou–se que o reconhecimento do desvio de finalidade eleitoreiro de bens, serviços e prerrogativas da Presidência da República, para fins de configuração do abuso de poder político, não depende da comprovação de emprego de recursos patrimoniais elevados. A exploração eleitoral de símbolos do Poder Público afeta bens impassíveis de serem estimados financeiramente e transmite sentidos perceptíveis pelo eleitorado que podem redundar em quebra de isonomia (AIJE nº 0600814–85, Rel. Min. Benedito Gonçalves, DJE de 01/08/2023). 39. O abuso de poder econômico configura–se com a utilização de recursos financeiros com o intuito de conferir vantagem indevida a determinada candidatura. O poder econômico, ao contrário do poder político em sentido estrito, mostra–se difuso e disperso na sociedade. Isso aumenta as variáveis objetivas e subjetivas para a configuração do abuso de poder econômico. 40. A gravidade é elemento típico das práticas abusivas, que se desdobra em um aspecto qualitativo (alto grau de reprovabilidade da conduta) e outro quantitativo (significativa repercussão em um determinado pleito). Seu exame exige a análise contextualizada da conduta, que deve ser avaliada conforme as circunstâncias da prática, a posição das pessoas envolvidas e a magnitude da disputa. 41. Assim, o desvio de finalidade eleitoreiro de comemorações festivas, envolvendo bens públicos materiais e imateriais, inclusive de valor simbólico, serviços públicos e prerrogativas decorrentes do exercício do cargo, dentre as quais o acesso a locais específicos, pode caracterizar conduta vedada pelo art. 73, I e III, da Lei nº 9.504/1997. A depender do vulto dos bens simbólicos ou dos valores investidos ou estimados, em cotejo com a reprovabilidade da conduta e a magnitude do pleito, o desvio pode configurar abuso de poder político e econômico. 42. A responsabilidade de candidatas e candidatos por seus atos observa o modelo da accountability. Ao se habilitarem para concorrer às eleições, essas pessoas se sujeitam a ter suas condutas rigorosamente avaliadas com base em padrões democráticos, calcados na isonomia, na normalidade eleitoral, no respeito à legitimidade dos resultados e na liberdade do voto. Esse regime é também inerente à atuação dos agentes públicos, submetidos à legalidade estrita. 43. A inelegibilidade decorrente da prática de abuso é sanção personalíssima, que se impõe "a quantos hajam contribuído para a prática do ato [abusivo]" (art. 22, XIV da LC nº 64/1990). Essa contribuição deve, portanto, ser avaliada considerando–se a conduta de cada pessoa frente ao padrão de comportamento que lhe era exigível. Assim: 43.1 No caso do abuso de poder político, a identificação do agente público responsável observa a parcela de poder detida e que foi empregada em desvio de finalidade, não se excluindo desse desenho o poder indevidamente apropriado por terceiros em decorrência de tráfico de influência ou outras condutas contrárias aos princípios republicano e da impessoalidade; e 43.2 No caso do abuso de poder econômico, a pulverização da origem de recursos não exclui a responsabilidade individual se da acumulação de condutas similares decorrer contribuição relevante para a consecução do ilícito. Fixação da moldura fática 44. A prova dos autos demonstra, de forma inequívoca, que os investigados buscaram fazer do Bicentenário da Independência e das comemorações oficiais da data cívica um potente fator de mobilização eleitoral. A narrativa apresentada foi a de que a presença dos apoiadores dos candidatos, ao lado das Forças Armadas, tornaria o ato decisivo na "luta do bem contra o mal", imagem que o primeiro investigado evocava como mote na disputa contra seu principal adversário no pleito. 45. A estratégia remonta ao menos à convenção partidária do Partido Liberal – PL, realizada em 24/07/2022, quando o então Presidente da República, que se lançava oficialmente à reeleição, comanda o comparecimento ao 7 de setembro como forma de mostrar o "poder da maioria", incitando oposição ao Poder Judiciário. 46. Na ocasião, o primeiro investigado se valeu da expressão "vamos às ruas pela última vez" para disparar um sentimento de urgência, associado a uma imaginária necessidade de atuação de seus apoiadores "para lutar por nossa liberdade e pela nossa pátria", supostamente ameaçada por Ministros do STF, denominados "poucos surdos de capa preta". 47. Em 30/07/2022, na convenção do Republicanos, o primeiro investigado intensificou a narrativa, anunciando que iria levar as Forças Armadas e as forças auxiliares, na data cívica, para desfiliar em Copacabana, local em que tradicionalmente seus apoiadores se reúnem. A alteração só lhe seria possível por ser, então, Presidente da República. O pré–candidato insiste na imagem de militares "ao lado do nosso povo" para exigir "paz, democracia, transparência e liberdade" e encerra a mensagem com seu slogan da campanha. 48. O comando reverberou para além das citadas convenções. Emissora de televisão deu destaque a longos trechos dos discursos. O material foi explorado na propaganda eleitoral de candidatos proporcionais divulgada na internet, com convocações que associavam a simbologia da data cívica, pautas ideológicas, motes distorcidos como "a independência contra o comunismo" e o apoio à candidatura dos investigados. 49. Em 06/09/2022, os investigados veicularam inserção de propaganda eleitoral em televisão na qual o primeiro investigado convoca "as famílias para "irem às ruas comemorar os 200 anos da nossa Independência" e divulga locais e horários em que estaria em Brasília e no Rio de Janeiro. Os horários coincidem com o das comemorações oficiais. 50. Os fatos demonstram a inequívoca difusão de mensagem direcionada a associar a comemoração do Bicentenário, e todo seu simbolismo, à campanha dos investigados, dentro de uma concepção de patriotismo militarizado fortemente explorada no pleito para manter a mobilização passional de suas bases. 51. O primeiro investigado, com ciência e conivência do segundo investigado, se dirigiu a seus apoiadores como "maioria" à qual pertencia a data cívica, instigando–os a combater ameaças imaginárias à liberdade da nação, atribuídas a seus adversários no pleito. O Chefe de Estado, fazendo as vezes de candidato, ou vice–versa, não deixou qualquer espaço para que o pluralismo político coubesse na comemoração cívica. 52. A cobertura do Bicentenário da Independência pela TV Brasil durou aproximadamente 4 horas, sendo possível identificar ao menos dois momentos em que se produziram dividendos eleitorais para os investigados. 53. No primeiro deles, ainda no Palácio da Alvorada, o primeiro investigado, trajando a faixa presidencial, direcionou a entrevista concedida à emissora pública para promover seu governo e difundir pautas eleitoreiras, assumindo nítido papel de candidato em campanha pela reeleição. Em referência indireta e inequívoca ao pleito próximo, o suposto ressurgimento do patriotismo foi explorado para dirigir ao público mensagens como "o que está em jogo é a nossa liberdade, é o nosso futuro" e que "o Brasil é nosso, nós sabemos o que queremos". 54. O segundo momento em que há indevida divulgação da figura do primeiro investigado ocorre ao final do evento. É possível ouvir a mestre de cerimônias comunicar que está encerrado o desfile, mas as câmeras da emissora governamental passam a enfocar o primeiro investigado, depois de descer da tribuna de honra e sem a faixa presidencial, transitando junto à população, enquanto se dirige para o trio elétrico no qual iria realizar comício. 55. Os apresentadores se mostram desconcertados e tentam tratar as imagens como uma continuidade da atuação do Chefe de Estado. Quando a transmissão desse momento é enfim interrompida, um dos militares presentes no estúdio, que lá estava para comentar o desfile cívico–militar, finaliza sua participação com a fala "espero [...] que possamos decidir que tipo de nação queremos para o futuro". 56. O vídeo disponibilizado no canal de YouTube da TV Brasil conta com quase 400.000 visualizações. 57. Além desses elementos frontais de promoção à figura política do primeiro investigado, destaca–se que: a) esteve presente à tribuna de honra ao menos um empresário de forte identificação eleitoral com o primeiro investigado, posicionado em local de precedência em relação a autoridades para acompanhamento do desfile cívico–militar, inclusive o Presidente de Portugal; b) o segundo investigado, embora não possuísse cargo no governo, participou, ao lado do então Vice–Presidente e dos comandantes das Forças Armadas, do momento solene em que o ex–Presidente da República autoriza o início do desfile da Independência; e c) o desfile cívico–militar foi encerrado pela passagem de tratores, representativos do agronegócio. 58. A participação dos tratores no desfile ocorreu por iniciativa do Movimento Brasil Verde e Amarelo, que logrou ter atendido seu singelíssimo pedido, dirigido ao Ministério da Defesa por meio de ofício em que o movimento se descreve como "patriótico em sua essência", e justificado pelo "intento de contribuir para a comemoração dos 200 anos de Independência". 59. O Movimento Brasil Verde e Amarelo também pediu a instalação de um trio elétrico na área de segurança da Esplanada dos Ministérios. Nesse caso, a solicitação foi dirigida ao Governo do Distrito Federal, em 19/08/2022. O movimento informou que o objetivo era "viabilizar a participação do Exmo. Sr. Presidente da República neste ano comemorativo pelos 200 anos da independência do Brasil". 60. É fato notório que o trio elétrico foi efetivamente instalado no local e que dele foi realizado o comício do primeiro investigado. A distância entre o palanque do desfile oficial e o ponto em que ficou o trio elétrico é de aproximadamente 350 metros, e foi percorrida a pé pelo primeiro investigado. 61. A prova documental demonstra que a realização do Desfile Cívico–Militar em Brasília, considerando–se o seu porte vultuoso e a projeção de um público superior ao dos anos anteriores, implicou em gastos de ao menos R$ 12.585.535,19 (doze milhões, quinhentos e oitenta e cinco mil, quinhentos e trinta e cinco reais e dezenove centavos). 62. Quanto ao Rio de Janeiro/RJ, restou evidenciado o interesse e empenho do primeiro investigado, então Presidente da República, para concentrar atos militares em Copacabana, mesmo local em que pretendia realizar atos de campanha. 63. Para esse intento, anunciou que o desfile militar, tradicionalmente realizado no centro da cidade, seria deslocado para Copacabana. Uma vez que essa ideia se frustrou, fato que o primeiro investigado atribuiu a perseguição política do Ministério Público, o Ministério da Defesa simplesmente cancelou o desfile. 64. O primeiro investigado, tanto na convenção do Republicanos como em entrevista a emissora de televisão, explorou fortemente a associação entre a exibição de poder militar e a força de sua candidatura. Na citada entrevista, em 03/09/2022, abordou, de forma indistinta, atos oficiais e eleitorais, como parte de uma grande celebração dos "200 anos de independência e uma eternidade de liberdade". 65. As providências para o incremento dos atos em Copacabana foram determinadas com urgência não usual e envolveram a contratação direta emergencial de serviços e o deslocamento de efetivo policial. As medidas permitiram ao primeiro investigado concatenar a apertada agenda, intercalando compromissos oficiais e de campanha no bairro de sua preferência. 66. O primeiro investigado, recebido pelo Governador do Estado do Rio de Janeiro na base aérea, seguiu em carro aberto até o Aterro do Flamengo. De lá partiu a motociata, que terminou em Copacabana, funcionando como um cortejo para intensificar a concentração no local. 67. A programação oficial demonstra que atos oficiais de menor visibilidade foram realizados em Copacabana enquanto transcorria a motociata. Os atos de grande visibilidade ficaram reservados para o momento em que o primeiro investigado já estava em Copacabana: salto de paraquedistas, salva de tiros e espetáculo de aviões da FAB. 68. O primeiro investigado ocupou a tribuna de honra com vestes esportivas, próprias à motociata, sem faixa presidencial, enquanto três autoridades militares formalmente trajadas se postavam impávidas em meio à intensa e animada movimentação de mais de uma dezena de pessoas em trajes informais, entre as quais Daniel Silveira, candidato a Senador, que relatou facilidade junto ao cerimonial para subir ao palanque e ocupar local de destaque. 69. Encerrado o ato, o primeiro investigado caminhou para o trio elétrico em que faria comício, e que estava instalado a aproximadamente 350 metros do local do palanque oficial. Imagens em vídeo juntadas com a petição inicial demonstram que o percurso se mostrava inteiramente ocupado pela grande massa humana em meio à qual caminhou o ex–Presidente. 70. Devido ao que descreveu como "confusão enorme", o Governador do Rio de Janeiro declarou que não conseguiu se manter junto ao primeiro investigado nesse deslocamento. Aviões da FAB ainda cruzaram o céu, soltando fumaça nas cores da bandeira do Brasil, enquanto o primeiro investigado, candidatos de seu grupo político e apoiadores realizavam o ato de campanha. 71. O trio elétrico utilizado para o comício em Copacabana foi custeado por Silas Malafaia, que juntou a nota fiscal da locação no valor de R$34.720,00. O aluguel do aparato por terceiro em benefício da campanha não é admitido pela legislação, mas não inibiu os investigados. Subsunção dos fatos às premissas de julgamento 72. A "prova robusta", necessária para a condenação em AIJE, equivale ao parâmetro da prova "clara e convincente" (clear and convincing evidence). 73. A tríade para apuração do abuso – conduta, reprovabilidade e repercussão – se perfaz diante de: a) prova de condutas que constituem o núcleo da causa de pedir; e b) elementos objetivos que autorizem: b.1) estabelecer um juízo de valor negativo a seu respeito, de modo a afirmar que são dotadas de alta reprovabilidade (gravidade qualitativa), e b.2) inferir com necessária segurança que essas condutas foram nocivas ao ambiente eleitoral (gravidade quantitativa). 74. Na hipótese, está demonstrado que o uso ostensivo da propaganda em televisão e das convenções eleitorais para convocar apoiadores dos investigados para que comparecessem às comemorações do Bicentenário da Independência, em 07/09/2022, foi direcionada a induzir a confusão entre atos oficiais e atos eleitorais. 75. Esse direcionamento se fez explorando motes de campanha, situando a festividade do Bicentenário na narrativa mais ampla de luta pela liberdade, banimento do mal e triunfo de um patriotismo militarizado, com a qual o primeiro investigado continuamente mobilizou suas bases. Linguagem e símbolos foram antecipadamente explorados para impor uma identificação restrita entre a data cívica e a candidatura dos investigados, bem como acionar o sentimento de urgência da ocupação das ruas "pela última vez", como grande mostra de poder e popularidade do ex–Presidente da República. 76. Comprovou–se a indevida mescla entre atos oficiais e eleitorais em Brasília/DF, uma vez que: 76.1 A entrevista concedida no Palácio da Alvorada à TV Brasil, transmitida ao vivo e intencionalmente direcionada para promoção da candidatura, foi concedida com a faixa presidencial e no espaço do bem público de acesso restrito ao Presidente, ambos bens de importância simbólica elevada; 76.2 O primeiro investigado, trajando a faixa presidencial, quebrou o protocolo e, ao chegar ao local do desfile, dirigiu–se para cumprimentar o público, criando oportunidade para ser saudado e demonstrar o êxito de seu protagonismo pessoal para mobilizar o público, fato que não chega a ser negado pela defesa; 76.3 O segundo investigado, o Movimento Brasil Verde e Amarelo e empresário apoiador da chapa tiveram acessos privilegiados, somente justificáveis à luz de interesses eleitoreiros, para participar da solenidade oficial; e 76.4 O Movimento Brasil Verde e Amarelo obteve, também, a privilegiadíssima autorização para adentrar o perímetro de segurança do evento e instalar trio elétrico na Esplanada dos Ministérios, a poucos metros do local do desfile oficial, circunstância essencial para que se lograsse o intento de que o comício eleitoral fosse, para o público, um momento contínuo em relação ao ato oficial; 77. O sequenciamento entre o ato oficial e o ato eleitoral, no mesmo espaço público, gerou para o público presente a percepção de que se tratava de dois momentos da campanha dos investigados. No primeiro, de construção da imagem (celebração oficial), foram exaltados os valores patriótico–militares dos quais o primeiro investigado pretendeu a todo tempo expressamente se apoderar. No segundo, de tradução da imagem (comício), o candidato finalmente se dirigiu verbalmente ao público para apresentar sua reeleição como única e necessária correspondência àqueles valores. 78. A retirada da faixa ao final do ato oficial, nesse contexto, não confere "bordas cirúrgicas" a dois atos, mas, sim, assinala uma transição entre dois momentos de um mesmo e grandioso evento. Funciona até mesmo como catalisador das expectativas, pois sinaliza que o candidato estaria livre para falar, criticar adversários, estimular a militância e pedir votos. 79. Também se comprovou a indevida mescla entre atos oficiais e eleitorais no Rio de Janeiro, pois: 79.1 A preparação do evento oficial, envolvendo a sensível mudança de seu local, o cancelamento de desfile no centro da cidade, horários e tipo de exibição a ser feita no momento em que o ex–Presidente já estivesse em Copacabana, foi integralmente formatada para atender ao que fosse mais cômodo para a campanha; 79.2 não houve respeito à mínima solenidade na tribuna de honra, considerando–se os trajes do próprio ex–Presidente da República, a presença de candidato de forte identificação ideológica com este e a informalidade do comportamento da maioria dos presentes, em um contraste desconfortável com as três autoridades militares que se postaram no local; 79.3 a presença breve do primeiro investigado à etapa solene do evento serviu apenas como pretexto para justificar a portentosa exibição do poderio militar em uma série de performances custeadas com recursos públicos; 79.4 ato contínuo a essa breve participação, o ex–Presidente da República foi imediatamente recebido pela massa de apoiadores que ocupava Copacabana; e 79.5 o trio elétrico custeado por Silas Malafaia estava a poucos metros do local do ato oficial, circunstância essencial para que se lograsse o intento de que o comício eleitoral fosse, para o público, um momento contínuo em relação ao ato oficial. 80. Houve inequivocamente um sequenciamento entre a "motociata", a participação no ato oficial e o comício, gerando para o público presente a percepção de um grande ato de campanha. 81. Também é impossível falar em "bordas cirúrgicas" entre a celebração oficial e os atos de campanha, no contexto em que a Orla de Copacabana foi transformada em um cenário no qual o candidato à reeleição pode amalgamar o poder político decorrente do cargo (simbolizado pelas performances militares de grande visibilidade) a seu capital eleitoral (simbolizado pela maciça presença de apoiadores à "motociata" e ao comício). 82. O desvio de recursos, bens e serviços públicos em favor da campanha restou evidenciado, diante dos vultosos recursos efetivamente apurados para custear o desfile cívico–militar em Brasília, da robusta demonstração militar no Rio de Janeiro e da apropriação de bens simbólicos. Essa apropriação é inestimável, pois envolve desde o uso eleitoral de imagens em propaganda eleitoral até a incalculável representatividade da data cívica intencionalmente capturada como elemento de mobilização política. 83. As condutas se revelaram graves, do ponto de vista qualitativo, tendo em vista que são dotadas de alta reprovabilidade, considerando–se o envolvimento direto dos candidatos investigados e os severos impactos decorrentes da apropriação simbólica da data cívica e da ausência de freios para potencializar os ganhos eleitorais da chapa. 84. Também está demonstrada a gravidade quantitativa, diante da gigantesca repercussão sobre o pleito, que pode ser ilustrada pelo êxito da criação de condições para dominância do espaço dos atos oficiais por apoiadores dos investigados, pelo acirramento do patriotismo militarizado como fator de radicalização política e pelo uso de meios de comunicação (mídia tradicional, inclusive emissora pública, e internet) para difundir perante o eleitorado a apropriação da coisa pública. 85. Conclui–se pela configuração das condutas vedadas pelo art. 73, I e III, da Lei nº 9.504/1997, com gravidade suficiente para preencher o núcleo típico do abuso de poder político e do abuso de poder econômico. 86. O primeiro investigado teve decisiva atuação, como Presidente da República candidato à reeleição, para a consecução do objetivo ilícito. Era ele o agente público detentor do poder político que se irradiou em todos os atos, seja em virtude da prática pessoal, seja por ordem direta sua ou de seu alto escalão, seja, ainda, por sua franca conivência e proveito eleitoreiro com situações escandalosas, como a colocação de trios elétricos a poucos metros das tribunas de honra. 87. No que se refere ao segundo investigado, sua posição não se resume à de beneficiário como componente da chapa. Houve efetiva atuação, a revelar não apenas a absoluta conivência com os ilícitos, mas também a conveniência de assumir um papel estrategicamente relevante sem jamais chegar a disputar os holofotes com o titular da chapa. 88. Destaque–se que o segundo investigado, general reformado com profunda compreensão da relevância dos bens simbólicos da República que foram apropriados, ocupou cargos relevantes no governo do primeiro investigado, inclusive o de Ministro da Defesa à época em que sua pasta assumiu a coordenação do desfile cívico–militar; foi coordenador de campanha; estava no palco durante o discurso feito pelo primeiro investigado a convenção do Partido Liberal e adotou postura conivente e satisfeita com a associação da campanha ao Bicentenário; participou do momento solene de autorização do início do desfile, ao lado do então Vice–Presidente, cargo que estava disputando; era responsável direto pela conteúdo da inserção de propaganda eleitoral do dia 06/07/2022; e manteve em seu perfil em rede social material que fez uso irregular de imagens do ato oficial em Brasília. III. Dispositivo 89. Preliminares rejeitadas. 90. Pedidos julgados parcialmente procedentes, para condenar os investigados, Jair Messias Bolsonaro e Walter Souza Braga Netto, pela prática de abuso de poder político e econômico nas Eleições 2022 e, em razão de sua responsabilidade direta e pessoal por condutas ilícitas praticadas em benefício de suas candidaturas, declarar a inelegibilidade de ambos pelos 8 (oito) anos seguintes ao pleito de 2022. 91. Cassação do registro de candidatura dos investigados prejudicada, exclusivamente em virtude de a chapa beneficiária das condutas abusivas não ter sido eleita, sem prejuízo de reconhecer–se os benefícios eleitorais ilícitos auferidos por ambos os investigados. 92. Comunicação imediata da decisão à Secretaria da Corregedoria–Geral Eleitoral para que, independentemente da publicação do acórdão, promova a devida anotação no histórico dos investigados, no Cadastro Eleitoral, da hipótese de restrição a sua capacidade eleitoral passiva. 93. Determinação de envio de comunicações à Procuradoria–Geral Eleitoral e ao Tribunal de Contas da União, para ciência e providências que entenderem cabíveis.