Informativo do STF 994 de 09/10/2020
Publicado por Supremo Tribunal Federal
PLENÁRIO
DIREITO CONSTITUCIONAL – ORGANIZAÇÃO DO ESTADO
Energia nuclear e competência legislativa dos entes federados -
É inconstitucional norma estadual que dispõe sobre a implantação de instalações industriais destinadas à produção de energia nuclear no âmbito espacial do território estadual. Ao dispor sobre a partilha de competências estatais, a Constituição Federal (CF) outorgou à União, em caráter privativo, a prerrogativa de legislar sobre “atividades nucleares de qualquer natureza” (CF, art. 22, XXVI) (1). Não obstante a indiscutível repercussão ambiental da utilização da energia nuclear, a própria CF excepcionou — dentre os diversos aspectos relacionados à competência comum partilhada entre ela e os Estados-membros e o Distrito Federal referentes à proteção ao meio ambiente e ao combate à poluição — a disciplina normativa pertinente às atividades e instalações nucleares, cuja regulamentação está inserida no domínio legislativo privativo da União. Com esse entendimento, o Plenário, por maioria, declarou a inconstitucionalidade dos arts. 256 e 257 da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul (2). (1) CF: “Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: (...) XXVI - atividades nucleares de qualquer natureza;” (2) Constituição do Estado do Rio Grande do Sul: “Art. 256. A implantação, no Estado, de instalações industriais para a produção de energia nuclear dependerá de consulta plebiscitária, bem como do atendimento às condições ambientais e urbanísticas exigidas em lei estadual. Art. 257. É vedado, em todo o território estadual, o transporte e o depósito ou qualquer outra forma de disposição de resíduos que tenham sua origem na utilização de energia nuclear e de resíduos tóxicos ou radioativos, quando provenientes de outros Estados ou Países.”
ADI 330/RS, rel. min. Celso de Mello, julgamento virtual em 9.10.2020. (ADI-3030)
DIREITO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE – PROFISSIONALIZAÇÃO E TRABALHO
CF, art. 7º, XXXIII: EC 20/1998 e idade mínima para o trabalho -
A norma fundada no art. 7º, XXXIII, da Constituição Federal (CF) (1), na alteração que lhe deu a Emenda Constitucional (EC) 20/1998, tem plena validade constitucional. Logo, é vedado “qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos”. O texto constitucional atribui à família, à sociedade e ao Estado o dever de assegurar, às crianças e aos adolescentes, em atenção e respeito à sua peculiar condição de pessoa em desenvolvimento, as condições materiais, afetivas, sociais e psicológicas necessárias ao acesso e à proteção ao direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária. Também lhes incumbe o dever de colocar a criança e o adolescente a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão [CF, art. 227 (2)]. Atendendo às diretrizes de caráter protetivo fundadas no art. 227, a EC 20/1998 modificou os critérios etários que definem a idade mínima para o regular início de atividades laborais. No desempenho de seu poder reformador, o Congresso Nacional proibiu a exploração de natureza estritamente econômica do trabalho infantil. As sequelas físicas, emocionais e sociais infligidas à criança e ao adolescente em decorrência da exploração do trabalho infantil, justificam a proteção especial e prioritária destinada a esse grupo vulnerável. A temática referente ao trabalho infantil é objeto de diversos instrumentos convencionais no plano internacional, notadamente a Convenção 138 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) (Convenção sobre Idade Mínima de Admissão ao Emprego, 1973) e a Convenção 182 da OIT (Convenção sobre a Proibição das Piores Formas de Trabalho Infantil, 1999), ambas formalmente incorporadas ao direito positivo interno. Perante a Organização das Nações Unidas (ONU), o Brasil assumiu o compromisso de erradicar todas as formas de trabalho infantil até 2025 [Meta 8.7 da Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável (3)]. A elevação da idade mínima para o trabalho do adolescente promovida pela EC 20/1998, além estar em plena conformidade com os princípios e diretrizes que orientam a doutrina da proteção integral — diretriz estruturante da CF de 1988 (art. 227) — acha-se, ainda, em harmonia com os objetivos e os postulados fundamentais da República [CF, art. 3º, IV (4)] e com os princípios básicos extraídos da ordem jurídica internacional. Ademais, a cláusula que proíbe o retrocesso em matéria social traduz, no processo de sua concretização, verdadeira dimensão negativa pertinente aos direitos sociais, impedindo, em consequência, que os níveis de concretização dessas prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser reduzidos, degradados ou suprimidos. Trata-se, na espécie, de ação direta de inconstitucionalidade ajuizada contra a parte final do inciso XXXIII do art. 7º da CF, na redação dada pela EC 20/1998. A confederação requerente buscava o restabelecimento do texto anterior do dispositivo constitucional, que determinava a “proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre aos menores de dezoito e de qualquer trabalho a menores de quatorze anos, salvo na condição de aprendiz”. O Plenário julgou o pedido improcedente e confirmou a validade da norma questionada. (1) CF: “Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: (...) XXXIII – proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de dezoito e de qualquer trabalho a menores de dezesseis anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de quatorze anos;” (2) CF: “Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.” (3) Agenda 2030/ONU: “8.7 Tomar medidas imediatas e eficazes para erradicar o trabalho forçado, acabar com a escravidão moderna e o tráfico de pessoas e assegurar a proibição e eliminação das piores formas de trabalho infantil, incluindo recrutamento e utilização de crianças-soldado, e até 2025 acabar com o trabalho infantil em todas as suas formas” (4) CF: “Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: (...) IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.”
ADI 2096/DF, rel. Min. Celso de Mello, julgamento virtual em 9.10.2020. (ADI-2096)
DIREITO CONSTITUCIONAL – ORGANIZAÇÃO DO ESTADO
Rotulagem de produtos transgênicos e competência legislativa dos entes federados -
É constitucional norma estadual que dispõe sobre a obrigatoriedade de rotulagem em produtos de gêneros alimentícios destinados ao consumo humano e animal, que sejam constituídos ou produzidos a partir de organismos geneticamente modificados, no percentual igual ou superior a 1%, no âmbito do Estado federado (Lei 14.274/2010 do Estado de São Paulo) (1) . No modelo federativo brasileiro, estabelecidas pela União as normas gerais para disciplinar sobre direito à informação em matéria de rotulagem de produtos transgênicos [Lei 11.105/2005, art. 40 (2); Decreto 5.591/2005, art. 91 (3); e Decreto 4.680/2003, art. 2º (4)], compete aos Estados [Constituição Federal (CF), art. 24, V, XII e §§1º a 4º] (5), além da supressão de eventuais lacunas, a previsão de normas destinadas a complementar a norma geral e a atender suas peculiaridades locais, respeitados os critérios: (i) da preponderância do interesse local, (ii) do exaurimento dos efeitos dentro dos respectivos limites territoriais — até mesmo para se prevenir conflitos entre legislações estaduais potencialmente díspares — e (iii) da vedação da proteção insuficiente. Nesse contexto, a regulamentação dos critérios para a obrigatoriedade do dever de rotulagem dos produtos derivados ou de origem transgênica, como o limite de percentual igual ou superior a 1%, não excede os limites da competência suplementar dos estados, no tocante a essa matéria. Isso porque, em primeiro lugar, o diploma estadual não afeta diretamente relações comerciais e consumeristas que transcendam os limites territoriais do ente federado. Exaurem-se os efeitos diretos da incidência das suas normas no território estadual e traduzem escolhas legítimas do legislador adequadamente amparadas nos interesses do consumidor, de densificação do direito à informação clara e adequada, e da proteção e defesa da saúde, atendidos, assim, os critérios do exaurimento dentro dos limites territoriais e da preponderância do interesse local. Em segundo lugar, não há nada na lei que represente relaxamento das condições mínimas (normas gerais) de segurança exigidas na legislação federal para o dever de informação nos rótulos dos produtos de origem transgênica. Ao contrário, o que se verifica é a implementação de critério mais protetivo e favorável ao consumidor e à proteção do direito à saúde, não comportando censura sob o prisma da vedação à proteção insuficiente. A possibilidade de o Estado federado instituir regras de proteção efetiva ao consumidor deriva de atribuição legislativa que lhe é conferida pelo arts. 24, V e VIII, combinado com o §2º do mesmo dispositivo da CF (6), e, consequentemente, ao fazê-lo não invadiu área reservada à União, tendo em vista que a esta apenas cabe legislar sobre normas gerais de produção e consumo e responsabilidade por dano ao consumidor, cabendo à unidade federada – vez que existe legislação federal a respeito do assunto – suprir os vácuos normativos. No caso, trata-se de ação direta de inconstitucionalidade, com pedido de medida cautelar, objetivando a declaração de inconstitucionalidade da Lei 14.274/2010 do Estado de São Paulo, que dispõe acerca da rotulagem de produtos transgênicos no Estado de São Paulo e dá outras providências. Com entendimento acima exposto, o Plenário, por maioria, julgou improcedentes os pedidos formulados na ação direta de inconstitucionalidade. (1) Lei 11.274/2010 do Estado de São Paulo: “Artigo 1º – Na comercialização de produtos destinados ao consumo humano ou animal, ou ainda utilizados na agricultura, é obrigatória a presença de informação visível para os consumidores a respeito de sua origem e procedência quando for constatada a presença de organismo transgênico em proporção igual ou superior ao limite de 1% (um por cento), com a seguinte classificação: ‘transgênico’. §1º – Nos produtos embalados ou vendados a granel, ou ainda in natura , nos rótulos das embalagens ou dos recipientes em que estão contidos deverá constar, em destaque, no painel principal e em conjunto com o símbolo definido pelo Ministério da Justiça (T), umas das seguintes expressões: I – ‘(nome do produto) transgênico’; II – ‘contém (nome do ingrediente ou ingredientes) transgênico (s)’; III – ‘produto produzido a partir de (nome do produto) transgênico’. §2º – O consumidor deverá ser informado sobre a espécie doadora do gene no local reservado para a identificação dos ingredientes. §3º – A informação determinada no §1º deste artigo também deverá constar do documento fiscal, de modo que essa informação acompanhe o produto ou ingrediente em todas as etapas da cadeia produtiva. Artigo 2º – Os estabelecimentos que comercializem produtos transgênicos ficam obrigados a possuir local específico para exposição destes produtos. Parágrafo único - Os produtos transgênicos não poderão ser expostos de forma a confundir os consumidores, em relação a produtos semelhantes não-transgênicos. Artigo 3º – Na comercialização ou transporte de produtos transgênicos, bem como dos produtos ou ingredientes deles derivados, deverá constar, em embalagem apropriada, informação aos consumidores a respeito de sua procedência e origem e quanto à presença de organismo transgênico. Artigo 4º – Caberá ao Centro de Vigilância Sanitária, da Secretaria de Saúde, fiscalizar os estabelecimentos e empresas que comercializem os produtos transgênicos. Artigo 5º – Caberá à Coordenadoria da Defesa Agropecuária, da Secretaria de Agricultura e Abastecimento, fiscalizar as empresas que comercializem sementes e produtos transgênicos, assim como o transporte dos mesmos, exigindo certificado de origem e permissão de trânsito. Artigo 6º – Os produtores e fornecedores de sementes transgênicas devem manter, para efeito de fiscalização, pelo prazo de cinco anos, as notas fiscais ou comprovantes de compra e venda das sementes transgênicas. Artigo 7º – Os estabelecimentos comerciais, as empresas, os produtores e os fornecedores abrangidos por esta lei terão o prazo de 180 (cento e oitenta) dias para se adequarem a seus dispositivos. Artigo 8º – Pela infração do disposto nesta lei, sem prejuízo das penalidades previstas no Código de Defesa do Consumidor e na legislação vigente, caberá aos órgãos fiscalizadores estaduais, conforme a gravidade da infração, adotar as seguintes penalidades: I – advertência; II – multa até o limite de 10.000 Unidades Fiscais do Estado de São Paulo – UFESP; III - apreensão do produto; IV - suspensão da atividade; V - cancelamento da autorização para funcionamento em âmbito estadual. Artigo 9º – As despesas decorrentes da execução desta lei correrão à conta de dotações orçamentárias próprias. Artigo 10 – Esta lei entra em vigor na data de sua publicação. Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, aos 16 de dezembro de 2010.” (2) Lei 11.105/2005: “Art. 40. Os alimentos e ingredientes alimentares destinados ao consumo humano ou animal que contenham ou sejam produzidos a partir de OGM ou derivados deverão conter informação nesse sentido em seus rótulos, conforme regulamento.” (3) Decreto 5.591/2005: “Art. 91. Os alimentos e ingredientes alimentares destinados ao consumo humano ou animal que contenham ou sejam produzidos a partir de OGM e seus derivados deverão conter informação nesse sentido em seus rótulos, na forma do decreto específico.” (4) Decreto 4.680/2003: “Art. 2º. Na comercialização de alimentos e ingredientes alimentares destinados ao consumo humano ou animal que contenham ou sejam produzidos a partir de organismos geneticamente modificados, com presença acima do limite de um por cento do produto, o consumidor deverá ser informado da natureza transgênica desse produto.” (5) CF: “Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: ( ) V – produção e consumo; ( ) XII – previdência social, proteção e defesa da saúde; ( ) § 1º No âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais. § 2º A competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência suplementar dos Estados. § 3º Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades. § 4º A superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário.” (6) CF: “Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: ( ) V – produção e consumo; (...) VIII – responsabilidade por dano ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico; (...) § 2º A competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência suplementar dos Estados.”
ADI 4619/SP, rel. min. Rosa Weber, julgamento virtual em 9.10.2020. (ADI-4619)
DIREITO PENAL – CÓDIGO DE TRÂNSITO BRASILEIRO
Crime de fuga e direito à não autoincriminação -
http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=4092573 É constitucional o tipo penal que prevê o crime de fuga do local do acidente [Código de Trânsito Brasileiro (CTB) art. 305] (1). A evasão do local do acidente não constitui exercício do direito ao silêncio ou do princípio do nemo tenetur se detegere . Essas garantias apenas limitam o Estado de impor a colaboração ativa do condutor do veículo envolvido no acidente para produção de provas que o prejudique. A escolha do legislador infraconstitucional está em consonância com o escopo da regra convencional sobre trânsito de “aumentar a segurança nas rodovias mediante a adoção de regras uniformes de trânsito”. O conjunto de leis no sentido do recrudescimento das regras de conduta no trânsito decorre da política criminal que visa acoimar a lamentável e alarmante situação que envolvem os acidentes de trânsito e que resultam, invariavelmente, mortes e graves lesões. A identificação dos envolvidos constitui fator imprescindível para consecução da finalidade da norma de regência. Nessa dimensão, é concedido ao condutor uma série de direitos resultantes da autorização conferida pelo Estado, mas que, a seu lado, obrigações são irrogadas e dentre elas, encontra-se a de permanecer no local do acidente para que seja identificado. Ressalte-se que a permanência no local do acidente não comporta ilação de confissão de autoria delitiva ou de responsabilidade pelo sinistro, mas tão somente a sua identificação. Com esse entendimento, o Plenário, por maioria, declarou a constitucionalidade do tipo penal descrito no art. 305 do CTB e julgou procedente a ação declaratória. (1) CTB: “Art. 305. Afastar-se o condutor do veículo do local do acidente, para fugir à responsabilidade penal ou civil que lhe possa ser atribuída: Penas – detenção, de seis meses a um ano, ou multa.”
ADC 35/DF, rel. orig. Min. Marco Aurélio, red. p/ o ac. Min. Edson Fachin, julgamento virtual em 9.10.2020. (ADC-35)
REPERCUSSÃO GERAL
DIREITO CONSTITUCIONAL – DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS
Leiloeiro e caução para o exercício da profissão -
A exigência de garantia para o exercício da profissão de leiloeiro, prevista nos artigos 6º a 8º do Decreto 21.981/1932, é compatível com o art. 5º, XIII, da Constituição Federal de 1988 (CF) (1). O art. 5º, XIII, da CF é norma constitucional de eficácia contida. Por isso, o legislador ordinário pode restringir o alcance da liberdade de exercício de qualquer trabalho nela prevista, a fim de disciplinar certas atividades cuja prestação possa, por falta de técnica, atingir negativamente a esfera de outros indivíduos ou de valores ou interesses da própria sociedade. Entretanto, a legitimidade da atuação legislativa no campo do exercício do trabalho deve ser limitada ao indispensável para viabilizar a proteção de outros bens jurídicos de interesse público igualmente resguardados pela própria Constituição, como a segurança, a saúde, a ordem pública, a incolumidade das pessoas e do patrimônio, a proteção especial da infância e outros. No caso, o leiloeiro lida diariamente com o patrimônio de terceiros, de forma que a prestação de fiança como condição para o exercício de sua profissão busca reduzir o risco de dano ao proprietário, o que reforça o interesse social da norma protetiva, bem como justifica a limitação para o exercício da profissão. Com esse entendimento, ao apreciar o Tema 455 da repercussão geral, o Plenário, por maioria, negou provimento a recurso extraordinário. (1) CF: “Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) XIII – é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer;”
RE 1263641/RS, rel. orig. Min. Marco Aurélio, red. p/ o ac. Min. Alexandre de Moraes, julgamento virtual em 9.10.2020. (RE-1263641)
DIREITO CONSTITUCIONAL – SEPARAÇÃO DE PODERES
Criação de conselho de representantes e fiscalização de ações do Executivo -
Surge constitucional lei de iniciativa parlamentar a criar conselho de representantes da sociedade civil, integrante da estrutura do Poder Legislativo, com atribuição de acompanhar ações do Executivo. Isso porque inexiste criação de cargos, funções ou empregos públicos da Administração direta ou autárquica a ensejar a reserva de iniciativa legislativa prevista no art. 61, § 1º, II, a, da Constituição Federal (CF) (1). O respeito à independência dos Poderes não pode significar exclusividade do Executivo na atividade criativa, considerados arranjos institucionais para melhor desempenho na missão constitucional. Na Carta da República, não são encontrados parâmetros a impedirem a instituição, pelo Legislativo, de novos mecanismos voltados ao exercício da atividade de controle. Muito menos blindagem destinada a proteger, do escrutínio do povo, os administradores da coisa pública. Envolvida participação da sociedade no acompanhamento da gestão pública, com densidade democrática elevada, o Supremo há de adotar postura de deferência à solução jurídica encontrada pelos formuladores. Em jogo faz-se a legitimação institucional, por parte do Legislativo, para a tomada de decisão. O Parlamento é a arena preferencial de deliberação na democracia representativa, de modo que, ao prever, em âmbito local, a existência de determinado colegiado enquanto mecanismo de atuação direta da sociedade civil, no acompanhamento da gestão da coisa pública, acaba por dar, mediante a institucionalização de espaços de participação social, concretude ao que se pode denominar “espírito de 1988” – a ser levado em conta, linear e indistintamente, por todos os Poderes da República. Cumpre à Casa Legislativa atuar no âmbito da prerrogativa que lhe é própria – discutir, em sede deliberativa, fiscalizatória e legiferante, os grandes temas nacionais e as diretrizes da atividade estatal na condução de políticas públicas. Com esse entendimento, ao apreciar o Tema 1040 da repercussão geral, o Plenário, por maioria, deu provimento parcial a recurso extraordinário para assentar a higidez constitucional dos arts. 54 e 55, caput, da Lei Orgânica do Município de São Paulo. Deu interpretação conforme a todos os incisos do citado art. 55, bem assim, no tocante à Lei municipal 13.881/2004, aos incisos IV, VIII, IX, X, XIII, XIV, XV e XVI do art. 9º, para não ter como vinculativa ou coercitiva a atuação do Conselho, ao § 1º do art. 12 e ao art. 23, assentando caber ao Legislativo firmar convênios e organizar curso de capacitação. Ainda quanto à Lei 13.881/2004, concluiu pela inconstitucionalidade das expressões “complementar”, contida no inciso VI do art. 2º; “através da Subprefeitura”, constante do § 2º do art. 20; dos parágrafos 3º do art. 12 e 2º do art. 15; do título do Capítulo VII — “Da Responsabilidade do Poder Executivo” —; dos arts. 22 e 25, declarando compatíveis com a Lei Maior os demais. (1) CF: “Art. 61. A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Câmara dos Deputados, do Senado Federal ou do Congresso Nacional, ao Presidente da República, ao Supremo Tribunal Federal, aos Tribunais Superiores, ao Procurador-Geral da República e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição. § 1º São de iniciativa privativa do Presidente da República as leis que: (...) II - disponham sobre: a) criação de cargos, funções ou empregos públicos na administração direta e autárquica ou aumento de sua remuneração;”
RE 626946/SP, rel. Min. Marco Aurélio, julgamento virtual em 9.10.2020. (RE-626946)
DIREITO CONSTITUCIONAL – DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS
Princípio da isonomia: pensão por morte e tratamento diferenciado entre homem e mulher -
É inconstitucional, por transgressão ao princípio da isonomia entre homens e mulheres [Constituição Federal (CF), art. 5º, I], a exigência de requisitos legais diferenciados para efeito de outorga de pensão por morte de ex-servidores públicos em relação a seus respectivos cônjuges ou companheiros/companheiras (CF, art. 201, V). Portanto, contraria o referido postulado constitucional exigir, para concessão da pensão por morte ao cônjuge varão supérstite, a comprovação de invalidez e de dependência econômica não exigidos à mulher ou companheira. Isso porque estudos recentes do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) revelam a importância das mulheres como “chefes de família”, o que torna completamente ultrapassada a presunção de dependência econômica da mulher em relação a seu cônjuge ou companheiro a justificar a mencionada discriminação. No caso, a atual lei que disciplina o regime de previdência social dos servidores públicos do estado do Rio Grande do Sul (Lei Complementar estadual 15.142/2018) revogou expressamente a Lei estadual 7.672/1982, que exigia essa comprovação de invalidez e de dependência econômica do cônjuge varão para o recebimento de pensão por morte. Assim, eliminou qualquer fator de discriminação entre homens e mulheres e consagrou, de maneira explícita, a presunção de dependência econômica do cônjuge ou companheiro/companheira, sem nenhuma ressalva concernente ao gênero do beneficiário. Ademais, não há ofensa ao princípio da fonte de custeio, eis que o argumento relativo à necessária indicação de contrapartida — como condição para fazer cumprir o princípio constitucional da igualdade — não se justifica, por tratar-se de benefício já instituído, sem que a ele corresponda aumento do valor pago. As contribuições previdenciárias continuam a ser adimplidas pelos respectivos segurados, independentemente do gênero a que pertencem, alimentadas por alíquotas estáveis e com idêntico índice percentual, sem que se registre aumento no valor ou no quantum do respectivo benefício de ordem previdenciária. O art. 201, V, da CF é preceito autoaplicável, revestido de aplicabilidade direta, imediata e integral, qualificando-se como estrutura jurídica dotada de suficiente densidade normativa, a tornar prescindível qualquer mediação legislativa concretizadora. Com base nesse entendimento, o Plenário, ao apreciar o Tema 457 da repercussão geral, negou provimento a recurso extraordinário.
RE 659424/RS, rel. Min. Celso de Mello, julgamento virtual em 9.10.2020. (RE-659424)
DIREITO ADMINISTRATIVO – SERVIDOR PÚBLICO
Atribuição de cargo em comissão e funções de direção, chefia e assessoramento -
No julgamento de Ação Direta de Inconstitucionalidade proposta para questionar a validade de leis que criam cargos em comissão, ao fundamento de que não se destinam a funções de direção, chefia e assessoramento, o Tribunal deve analisar as atribuições previstas para os cargos. Na fundamentação do julgamento, o Tribunal não está obrigado se pronunciar sobre a constitucionalidade de cada cargo criado, individualmente. Os cargos em comissão de livre nomeação, conforme preceitua a Constituição Federal (CF), destinam-se apenas às atribuições de direção, chefia e assessoramento (CF, art. 37, V) (1). Somente após a apreciação das descrições das atividades dos cargos públicos na lei é que se poderá afirmar sua compatibilidade com a norma constitucional (nacional ou estadual) que estabelece os casos e as hipóteses de cargos em comissão. Desse modo, instaurado o controle abstrato de constitucionalidade no âmbito de tribunal de justiça para a análise da higidez constitucional de lei municipal que cria cargos em comissão, a corte local deve examinar as atribuições dos cargos em comissão. Além disso, ao apreciar o Tema 339 da repercussão geral, o Plenário definiu que o art. 93, IX, da CF exige que o acórdão ou decisão sejam fundamentados, ainda que sucintamente, sem determinar, contudo, o exame pormenorizado de cada uma das alegações ou provas. Assim, a corte de origem não está obrigada, na fundamentação do acórdão que julga a ação de inconstitucionalidade, a manifestar-se sobre cada cargo, individualmente. No caso, trata-se de ação direta para verificação da compatibilidade, com dispositivos de constituição estadual, de leis municipais que criaram cargos públicos de provimento em comissão, que, em tese, não seriam destinados a funções de chefia, direção e assessoramento. O tribunal de justiça julgou procedente em parte o pedido, afirmando, em suma, não ser possível a verificação das atribuições dos cargos para se concluir no sentido da inconstitucionalidade das normas. O acórdão foi impugnado por meio de embargos de declaração. Com base nesse entendimento, o Plenário, ao apreciar o Tema 670 da repercussão geral, deu provimento ao recurso extraordinário, em maior extensão, para que os autos retornem ao tribunal de origem, para novo julgamento dos embargos de declaração. (1) CF: “Art. 37. (...) V – as funções de confiança, exercidas exclusivamente por servidores ocupantes de cargo efetivo, e os cargos em comissão, a serem preenchidos por servidores de carreira nos casos, condições e percentuais mínimos previstos em lei, destinam-se apenas às atribuições de direção, chefia e assessoramento;”
RE 719870/MG, rel. orig. Min. Marco Aurélio, red. p/ o ac. Min. Alexandre de Moraes, julgamento virtual em 9.10.2020. (RE-719870)
SEGUNDA TURMA
DIREITO PROCESSUAL PENAL – PROCESSO EM GERAL
Audiência de custódia: prisão em flagrante e Lei 13.964/2019 -
Toda pessoa que sofra prisão em flagrante — qualquer que tenha sido a motivação ou a natureza do ato criminoso, mesmo que se trate de delito hediondo — deve ser obrigatoriamente conduzida, “sem demora”, à presença da autoridade judiciária competente, para que esta, ouvido o custodiado “sobre as circunstâncias em que se realizou sua prisão” e examinados os aspectos de legalidade formal e material do auto de prisão em flagrante, possa: (i) relaxar a prisão, se constatar a ilegalidade do flagrante, (ii) conceder liberdade provisória, se estiverem ausentes as situações referidas no art. 312 do Código de Processo Penal (CPP) (1) ou se incidirem, na espécie, quaisquer das excludentes de ilicitude previstas no art. 23 do Código Penal (CP) (2), ou, ainda, (iii) converter o flagrante em prisão preventiva, se presentes os requisitos dos arts. 312 e 313 (3) do CPP. A audiência de custódia (ou de apresentação) constitui direito público subjetivo, de caráter fundamental, assegurado por convenções internacionais de direitos humanos a que o Estado brasileiro aderiu, já incorporadas ao direito positivo interno (Convenção Americana de Direitos Humanos e Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos). Traduz prerrogativa não suprimível assegurada a qualquer pessoa. Sua imprescindibilidade tem o beneplácito do magistério jurisprudencial (ADPF 347 MC) e do ordenamento positivo doméstico [Lei 13.964/2019 e Resolução 213/2015 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)]. A ausência da realização da audiência de custódia qualifica-se como causa geradora da ilegalidade da própria prisão em flagrante, com o consequente relaxamento da privação cautelar da liberdade. Ressalvada motivação idônea, o magistrado que deixar de promovê-la se sujeita à tríplice responsabilidade [CPP, art. 310, § 3º (4)]. No contexto da audiência de custódia, é legítima a conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva somente se e quando houver pedido expresso e inequívoco por parte do Ministério Público, da autoridade policial ou, se for o caso, do querelante ou do assistente do Parquet. A reforma introduzida pela Lei 13.964/2019 (“Lei Anticrime”) modificou a disciplina referente às medidas de índole cautelar. Ao suprimir a expressão “de ofício” que constava do art. 282, §§ 2º e 4º, e do art. 311 do CPP (5), a lei vedou, de forma absoluta, a decretação da prisão preventiva sem prévio requerimento. Foi suprimida a possibilidade de o magistrado ordenar, sponte sua , a imposição de prisão preventiva. Assim, não é possível a decretação ex officio de prisão preventiva em qualquer situação (em juízo ou no curso de investigação penal), inclusive no contexto de audiência de custódia. Tornou-se inviável a conversão de ofício, mesmo na hipótese a que se refere o art. 310, II, do CPP (6). Independentemente da gravidade em abstrato do crime, não se presume a configuração dos pressupostos e dos fundamentos referidos no art. 312 do CPP, que hão de ser adequada e motivadamente comprovados em cada situação ocorrente. Mostra-se inconcebível que se infira do auto de prisão em flagrante, ato de natureza meramente descritiva, a existência de representação tácita ou implícita da autoridade policial a fim de convertê-la em prisão preventiva. Em matéria processual penal, inexiste, em nosso ordenamento jurídico, o poder geral de cautela dos juízes, notadamente em tema de privação e/ou restrição da liberdade das pessoas. Consequentemente, é vedada a adoção de provimento cautelares inominados ou atípicos — em detrimento de investigado, acusado ou réu —, em face dos postulados constitucionais de tipicidade processual e da legalidade estrita. Trata-se, na espécie, de habeas corpus impetrado contra decisão monocrática de ministro do Superior Tribunal de Justiça que indeferiu o pedido cautelar lá formulado em sede de ação constitucional de mesma natureza. No caso, magistrado de primeira instância afirmou não vislumbrar como realizar audiência de custódia dos pacientes, haja vista a situação de pandemia do novo coronavírus (Covid-19). Além disso, registrou que a audiência seria realizada em momento oportuno e converteu de ofício as prisões em flagrante em preventivas. A Segunda Turma não conheceu da impetração, mas concedeu, de ofício, a ordem de habeas corpus para invalidar, por ilegal, a conversão ex officio das prisões em flagrante dos ora pacientes em prisões preventivas, confirmando, em consequência, o provimento cautelar anteriormente deferido. (1) CPP: “Art. 312. A prisão preventiva poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria e de perigo gerado pelo estado de liberdade do imputado. § 1º A prisão preventiva também poderá ser decretada em caso de descumprimento de qualquer das obrigações impostas por força de outras medidas cautelares (art. 282, § 4º). § 2º A decisão que decretar a prisão preventiva deve ser motivada e fundamentada em receio de perigo e existência concreta de fatos novos ou contemporâneos que justifiquem a aplicação da medida adotada.” (2) CP: “Art. 23 – Não há crime quando o agente pratica o fato: I – em estado de necessidade; II – em legítima defesa; III – em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito. Parágrafo único – O agente, em qualquer das hipóteses deste artigo, responderá pelo excesso doloso ou culposo.” (3) CPP: “Art. 313. Nos termos do art. 312 deste Código, será admitida a decretação da prisão preventiva: I – nos crimes dolosos punidos com pena privativa de liberdade máxima superior a 4 (quatro) anos; II – se tiver sido condenado por outro crime doloso, em sentença transitada em julgado, ressalvado o disposto no inciso I do caput do art. 64 do Decreto-Lei 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal; III – se o crime envolver violência doméstica e familiar contra a mulher, criança, adolescente, idoso, enfermo ou pessoa com deficiência, para garantir a execução das medidas protetivas de urgência; § 1º Também será admitida a prisão preventiva quando houver dúvida sobre a identidade civil da pessoa ou quando esta não fornecer elementos suficientes para esclarecê-la, devendo o preso ser colocado imediatamente em liberdade após a identificação, salvo se outra hipótese recomendar a manutenção da medida. § 2º Não será admitida a decretação da prisão preventiva com a finalidade de antecipação de cumprimento de pena ou como decorrência imediata de investigação criminal ou da apresentação ou recebimento de denúncia.” (4) CPP: “Art. 310. Após receber o auto de prisão em flagrante, no prazo máximo de até 24 (vinte e quatro) horas após a realização da prisão, o juiz deverá promover audiência de custódia com a presença do acusado, seu advogado constituído ou membro da Defensoria Pública e o membro do Ministério Público, e, nessa audiência, o juiz deverá, fundamentadamente: (...) § 3º A autoridade que deu causa, sem motivação idônea, à não realização da audiência de custódia no prazo estabelecido no caput deste artigo responderá administrativa, civil e penalmente pela omissão.” (5) CPP: “Art. 282. As medidas cautelares previstas neste Título deverão ser aplicadas observando-se a: (...) § 2º As medidas cautelares serão decretadas pelo juiz a requerimento das partes ou, quando no curso da investigação criminal, por representação da autoridade policial ou mediante requerimento do Ministério Público. (...) § 4º No caso de descumprimento de qualquer das obrigações impostas, o juiz, mediante requerimento do Ministério Público, de seu assistente ou do querelante, poderá substituir a medida, impor outra em cumulação, ou, em último caso, decretar a prisão preventiva, nos termos do parágrafo único do art. 312 deste Código. (...) Art. 311. Em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial.” (6) CPP: “Art. 310. (...) II – converter a prisão em flagrante em preventiva, quando presentes os requisitos constantes do art. 312 deste Código, e se revelarem inadequadas ou insuficientes as medidas cautelares diversas da prisão; ou”
HC 188888/MG, rel. Min. Celso de Mello, julgamento em 6.10.2020. (HC-188888)