Informativo do STF 989 de 04/09/2020
Publicado por Supremo Tribunal Federal
PLENÁRIO
DIREITO CONSTITUCIONAL – CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE
Controle concentrado de constitucionalidade: suspeição e impedimento -
Não há impedimento, nem suspeição de ministro, nos julgamentos de ações de controle concentrado, exceto se o próprio ministro firmar, por razões de foro íntimo, a sua não participação. Essa foi a orientação fixada pela maioria do Plenário, ao resolver questão de ordem suscitada pelo presidente, em ação direta de inconstitucionalidade, acerca da não aplicabilidade da regra, após o ministro Marco Aurélio arguir a impossibilidade de sua participação no julgamento, considerado o Código de Processo Civil (CPC) [art. 144, III, VIII e § 3º (1)]. O colegiado ratificou o posicionamento firmado em questão de ordem quando da apreciação da ADI 2.238, para que seja aplicado em todas as hipóteses de controle concentrado, nas quais se discute a validade de normas ou de atos, como na ADPF, que dizem respeito ao controle em abstrato na via concentrada. De igual modo, assegurou a possibilidade de ministro, por motivo de foro íntimo, não participar de julgamento. O Tribunal observou que os institutos do impedimento e da suspeição se restringem ao plano dos processos subjetivos, em cujo âmbito discutem-se situações individuais e interesses concretos, não se estendendo, nem se aplicando, ordinariamente, no processo de fiscalização concreta de constitucionalidade, que se define como típico processo de caráter objetivo destinado a viabilizar o exame não de uma situação concreta, mas da constitucionalidade, ou não, in abstracto, de determinado ato normativo editado pelo Poder Público. A questão foi apresentada para fins, inclusive, de coordenação dos trabalhos. A forma de composição do Supremo Tribunal Federal (STF) está escrita na Constituição Federal (CF). Levados em conta os dispositivos do CPC, que ampliaram casos de impedimento e suspeição, poder-se-ia chegar à situação da inexistência de quórum necessário para o pregão de processo do controle concentrado e objetivo, bem assim para a modulações de efeitos, por exemplo. Por oportuno, o ministro Marco Aurélio externou compreensão no sentido da impossibilidade de haver, pelo CPC, o afastamento de integrante do STF dos processos objetivos. Vencido o ministro Edson Fachin, que não acolheu a proposição. Relembrou ter sido questionada a constitucionalidade do art. 144, VIII, do Código de Processo Civil, na ADI 5.953, cujo julgamento não foi concluído. Avaliou não ser possível que os magistrados do STF se coloquem à parte do dispositivo legal, diante da presunção de constitucionalidade da regra. (1) CPC: “Art. 144. Há impedimento do juiz, sendo-lhe vedado exercer suas funções no processo: (...) III – quando nele estiver postulando, como defensor público, advogado ou membro do Ministério Público, seu cônjuge ou companheiro, ou qualquer parente, consanguíneo ou afim, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau, inclusive; (...) VIII – em que figure como parte cliente do escritório de advocacia de seu cônjuge, companheiro ou parente, consanguíneo ou afim, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau, inclusive, mesmo que patrocinado por advogado de outro escritório; (...) § 3º O impedimento previsto no inciso III também se verifica no caso de mandato conferido a membro de escritório de advocacia que tenha em seus quadros advogado que individualmente ostente a condição nele prevista, mesmo que não intervenha diretamente no processo.”
ADI 6362/DF, rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 2.9.2020. (ADI-6362)
DIREITO CONSTITUCIONAL – ORGANIZAÇÃO DO ESTADO
Covid-19: requisições administrativas de bens e serviços e federalismo cooperativo -
No mérito, o Plenário julgou improcedente o pedido formulado na ação direta de inconstitucionalidade contra o art. 3º, caput, VII, e § 7º, III, da Lei 13.979/2020 (1), que dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019 (Covid-19). A Confederação requerente pleiteava que fosse conferida interpretação conforme à CF aos dispositivos impugnados. Pretendia, em síntese, que o Ministério da Saúde coordenasse as medidas de requisições administrativas, que não poderiam ser levadas a efeito pelos entes subnacionais antes de estudos e do consentimento do órgão federal. Requeria a consignação pelo STF de que, para ter-se a constitucionalidade do preceito, seria preciso a prévia audiência do atingido pela requisição, sempre acompanhada de motivação, tendo em conta o princípio da proporcionalidade e a inexistência de outra alternativa menos gravosa. A Corte registrou que o federalismo fortalece a democracia, pois promove a desconcentração do poder e facilita a aproximação do povo com os governantes. Ele gravita em torno do princípio da autonomia e da participação política. É natural que os municípios e os estados-membros sejam os primeiros a serem instados a reagir numa emergência de saúde, sobretudo quando se trata de pandemia. Ademais, frisou que o Estado federal repousa sobre dois valores importantes. O primeiro refere-se à inexistência de hierarquia entre os seus integrantes, de modo a não permitir que se cogite da prevalência da União sobre os estados-membros ou, destes, sobre os municípios, consideradas as competências que lhe são próprias. Já o segundo, consubstanciado no princípio da subsidiariedade, significa, em palavras simples, o seguinte: tudo aquilo que o ente menor puder fazer de forma mais célere, econômica e eficaz não deve ser empreendido pelo ente maior. Dentro dos quadros do “federalismo cooperativo” ou “federalismo de integração”, compete concorrentemente à União, aos estados-membros e ao Distrito Federal legislar sobre a “proteção e defesa da saúde” [CF, art. 24, XII, § 1º (2)]. Constitui competência comum a todos eles, inclusive aos municípios, “cuidar da saúde e assistência pública” [CF, art. 23, II (3)]. Vale lembrar que a Constituição prevê, ao lado do direito subjetivo público à saúde, o dever estatal de dar-lhe efetiva concreção, mediante “políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação” [art. 196 (4)]. Trata-se da dimensão objetiva ou institucional do direito fundamental à saúde. O colegiado assinalou, portanto, que a defesa da saúde compete a qualquer das unidades federadas, sem que dependam da autorização de outros níveis governamentais para levá-las a efeito, cumprindo-lhes, apenas, consultar o interesse público que têm o dever de preservar. A competência comum de cuidar da saúde compreende a adoção de quaisquer medidas que se mostrem necessárias para salvar vidas e restabelecer a saúde das pessoas acometidas pelo novo coronavírus, incluindo-se nelas o manejo da requisição administrativa. Recordou que, ao analisar a ADI 6.341 MC-Ref, ficou assentado que os entes federados possuem competência concorrente para adotar as providências normativas e administrativas necessárias ao combate da pandemia em curso, dentre as quais se inclui a requisição administrativa de bens e serviços constante do art. 3º, VII, da Lei 13.979/2020. Ficou registrado que o pior erro na formulação das políticas públicas é a omissão, sobretudo para as ações essenciais exigidas pelo art. 23 da CF. Igualmente, externou que a diretriz constitucional da hierarquização, constante do caput do art. 198 (5), não significou hierarquização entre os entes federados, mas comando único, dentro de cada um deles. Ademais, o exercício da competência específica da União para legislar sobre vigilância epidemiológica, que ensejou a elaboração da Lei 13.979/2020, não restringiu a competência própria dos demais entes da Federação para a implementação de ações no campo da saúde. O Plenário observou que o citado diploma normativo incluiu, expressamente, aquelas unidades federativas. Na hipótese de qualquer uma delas lançar mão da referida requisição, será garantido o pagamento posterior de indenização justa. Salientou que o ordenamento jurídico brasileiro já era pródigo em prever a possibilidade de acionamento da requisição administrativa antes mesmo do advento da legislação contestada. O instituto possui fundamento nos arts. 5º, XXIII e XXV, e 170, III, da CF (6). Mais especificamente, “no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano” (art. 5°, XXV). Com base no art. 23, II, da CF, a medida pode ser desencadeada por qualquer dos entes. Isso significa que a requisição, embora constitua ato discricionário, é também, de certa maneira, vinculada, pois o administrador não pode dela lançar mão se ausente o pressuposto do perigo público iminente. Ela foi concebida para arrostar situações urgentes e inadiáveis. Distingue-se claramente da desapropriação, em que a indenização, como regra, é prévia. Dessa forma, a própria indenização, acaso devida, será sempre posterior. Conforme atesta a doutrina, a medida também abrange bens e serviços médico-hospitalares. Por isso, o ato de requisição não dispensa sua apropriada motivação. A comprovação do atendimento do interesse coletivo, consubstanciado na necessidade inadiável do uso do bem ou do serviço do particular em decorrência de perigo público iminente, será contemporânea à execução do ato, possibilitando, assim, o seu posterior questionamento na justiça, se for o caso. Quanto ao papel da União no combate à pandemia, o art. 21, XVIII, da CF defere-lhe a atribuição de “planejar e promover a defesa contra as calamidades públicas, especialmente as secas e inundações”. Lido em conjunto com o art. 198 da CF — o qual dispõe que o Sistema Único de Saúde (SUS) é organizado de maneira hierarquizada —, percebe-se que a ela compete assumir coordenação das atividades desse setor. Consideradas as consequências práticas da aplicação literal da Lei Orgânica da Saúde (Lei 8.080/1990), não há evidências de que o Ministério da Saúde, embora competente para coordenar, em âmbito nacional, as ações de vigilância epidemiológica e sanitária, tenha a capacidade de analisar e solucionar tempestivamente as multifacetadas situações emergenciais que eclodem em cada uma das regiões ou localidades do País [Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), art. 20 (7)]. Avalizar todas as requisições administrativas de bens e serviços de saúde privados, levadas a efeito por gestores estaduais e municipais, retiraria dos governos locais o poder de gestão autônoma que lhes é inerente e acarretaria a absoluta ineficiência das medidas emergenciais previstas pela Lei 13.979/2020, indispensáveis ao pronto atendimento da sociedade. A atuação da União é na linha de prover, amparar e auxiliar os demais entes sem substituí-los em suas competências derivadas da CF. Nessa esteira, as requisições levadas a efeito pelos entes subnacionais não podem ser limitadas ou frustradas pela falta de consentimento do Ministério da Saúde, sob pena de indevida invasão de competências que são comuns à União e aos entes federados, bem como diante do risco de se revelarem ineficazes ou extemporâneas. Dado esse contexto, o Tribunal reputou ser incabível a exigência de autorização do Ministério da Saúde no concernente às requisições administrativas decretadas pelos estados-membros, Distrito Federal e municípios no exercício das respectivas competências constitucionais. Nesse sentido, a deliberação da Corte na ADI 6.343 MC-Ref. O colegiado registrou que a exigência de fundamentação adequada se encontra prevista no art. 3°, § 1°, da Lei 13.979/2020 (8), cuja apreciação é atribuição exclusiva de cada uma das autoridades públicas integrantes dos três níveis político-administrativos da Federação brasileira. Isso, tendo em conta as situações concretas com as quais são defrontadas, sempre com a observância dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade. Ademais, como todas as ações estatais, além de serem balizadas pelos critérios da razoabilidade e da proporcionalidade, as requisições somente podem ser levadas a cabo após a constatação de que inexistem outras alternativas menos gravosas. Consoante informações recebidas do Senado Federal, a Corte ressaltou que o Ministério da Saúde, autor da legislação, intencionalmente preferiu não condicionar as requisições a seu crivo prévio, tendo em vista a autonomia administrativa dos entes da Federação para promover requisições e a dinâmica de cada um deles, em função da realidade e de suas particularidades. Essa escolha que foi referendada pela Presidência da República, ao enviar o projeto de lei para debate, e pelo Congresso Nacional, ao aprová-lo. Dito isso, a Corte compreendeu que vulneraria frontalmente o princípio da separação dos Poderes a incursão do Judiciário em seara de atuação privativa do Legislativo e do Executivo, substituindo-os na tomada de decisões de cunho eminentemente normativo e político-administrativo. Portanto, não cabe ao STF suprir ou complementar a vontade conjugada dos demais Poderes, que deu origem aos dispositivos legais contestados — claramente unívocos, porquanto despidos de qualquer ambiguidade —, de maneira a criar, por meio da técnica de interpretação conforme à Constituição, obrigação não cogitada por seus legítimos criadores. Após mencionar projetos de lei que estão em trâmite no Congresso Nacional, o Tribunal sublinhou que a pretensão da requerente está sendo debatida na seara adequada para contemplar aquilo que ela pretende nesta ação. Por mais esse motivo, cumpre ao STF aguardar a solução da questão pelos representantes da soberania popular e exercer a autocontenção que lhe convém nessas situações. De resto, considerou que, agasalhar o pleito da requerente, tornaria “inexequível a estratégia de combate ao vírus, inviabilizando qualquer solução de logística adotada pelas autoridades de saúde em qualquer âmbito de atuação”. Logo, a criação de novos requisitos para a implementação do instituto, por meio da técnica de interpretação conforme, não se coaduna com sua natureza expedita, para cujo acionamento o texto constitucional exige apenas a configuração de iminente perigo público. Em reforço, o Plenário salientou que a CF, ao tratar da Ordem Econômica, albergou o postulado da função social da propriedade, significando que esta, por vezes, pode revelar um interesse não coincidente com o do próprio titular do direito, ensejando o seu uso pela coletividade, independentemente da vontade deste. Ante o quadro da reconhecida pandemia, entendeu demonstrado que, no conflito entre os princípios da proporcionalidade, do livre exercício de atividade privada e da transparência com o direito universal à saúde, este deve prevalecer na medida exata para evitar mortes. Por fim, assinalou que, em matéria de cunho semelhante, foi sufragada, por unanimidade, conclusão idêntica a aqui revelada (ADPF 671 AgR). Improcedente a pretensão, mostra-se inexequível o pedido de suspensão imediata de todas as requisições administrativas realizadas. O ministro Roberto Barroso adotou, como fundamento, que as requisições administrativas realizadas por estados, municípios e Distrito Federal, no contexto da pandemia causada pelo Covid-19, independem da oitiva do atingido ou de prévia autorização do Ministério da Saúde, mas pressupõem, nos termos da lei, evidências científicas e motivação, observado o princípio da proporcionalidade. Por sua vez, o ministro Gilmar Mendes declarou que seu voto, além de estar fundamentado no princípio da proporcionalidade, observa a inexistência da primazia ou hierarquia de poder de requisição entre os entes federativos. Enfatizou que parte dos problemas detectados têm a ver com a conduta de desvio na execução do modelo SUS como preconiza o texto constitucional. (1) Lei 13.979/2020: “Art. 3º Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, dentre outras, as seguintes medidas: (...) VII – requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, hipótese em que será garantido o pagamento posterior de indenização justa; e (...) § 7º As medidas previstas neste artigo poderão ser adotadas: (...) III – pelos gestores locais de saúde, nas hipóteses dos incisos III, IV e VII do caput deste artigo.” (2) CF: “Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: (...) XII – previdência social, proteção e defesa da saúde; (...) § 1º No âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais.” (3) CF: “Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios: (...) II – cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência;” (4) CF: “Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.” (5) CF: “Art. 198. As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:” (6) CF: “Art. 5º (...) XXIII – a propriedade atenderá a sua função social; (...) XXV – no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano; (...) Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (...) III – função social da propriedade;” (7) LINDB: “Art. 20. Nas esferas administrativa, controladora e judicial, não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão. Parágrafo único. A motivação demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta ou da invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, inclusive em face das possíveis alternativas.” (8) Lei 13.979/2020: “Art. 3º (...) § 1º As medidas previstas neste artigo somente poderão ser determinadas com base em evidências científicas e em análises sobre as informações estratégicas em saúde e deverão ser limitadas no tempo e no espaço ao mínimo indispensável à promoção e à preservação da saúde pública.”
ADI 6362/DF, rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 2.9.2020. (ADI-6362)
DIREITO CONSTITUCIONAL – CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE
Regime Jurídico Único: Emenda à Constituição e quórum para aprovação -
O Plenário iniciou julgamento de ação direta de inconstitucionalidade ajuizada em face da Emenda Constitucional (EC) 19/1998, na parte em que alterou a redação do caput e dos incisos X e XIII do art. 37 (1); do caput e dos §§ 1º e 7º do art. 39 (2); do § 2º do art. 41 (3); do art. 135 (4); do § 7º do art. 169 (5); e do inciso V do art. 206 (6) da Constituição Federal (CF). Também foi impugnado o art. 26 (7) da referida EC. A ministra Cármen Lúcia (relatora), confirmando a cautelar anteriormente deferida, julgou parcialmente procedente o pedido formulado para declarar a inconstitucionalidade formal do caput do art. 39 da CF, bem como prejudicado o pleito quanto ao art. 26 da EC 19/1998. A relatora afirmou que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) se consolidou no sentido da possibilidade de invalidação de emendas constitucionais nas hipóteses de ultraje aos limites insculpidos no art. 60 da CF. Observou que, no caso, quando da tramitação de Substitutivo da Proposta da Emenda Constitucional 173/1995, o bloco de oposição apresentou pedido para votação em separado das alterações apresentadas para as normas que extinguiam a previsão constitucional originária do regime jurídico único, instituindo o contrato de emprego público. O pedido objetivava, expressamente, “manter a regra atual do regime jurídico único, alcançando todos os servidores da Administração Pública direta, autárquica e fundacional, bem assim preservar a permissão de contratação temporária por excepcional interesse público”. Ao ser submetido à votação pelo Plenário da Câmara dos Deputados, o Substitutivo foi aprovado, ressalvados os destaques, com 309 votos favoráveis, 147 votos contrários e 18 abstenções. Os dispositivos destacados, objeto do DVS 9 (que extinguiam o regime jurídico único), não obtiveram três quintos dos votos pela aprovação (308 votos), contando com 298 votos favoráveis, 142 votos contrários e 8 abstenções. Rejeitadas, conforme proclamado pelo então Presidente da Câmara dos Deputados, as alterações propostas para o inciso IX do art. 37, para o caput do art. 39 e para o § 3º do art. 114 da CF. As normas objeto do DVS 9 foram rejeitadas e suprimidas do texto da Proposta de Emenda Constitucional, pelo que não poderiam ter sido submetidas à votação em 2º turno. Assim, o não atingimento do quórum de votação para promover as alterações propostas no Substitutivo aos arts. 37, inciso IX; 39, caput, e 114, § 3º, da CF, configurou inequívoca manifestação do Plenário da Câmara dos Deputados, no sentido da rejeição da proposta de extinção do regime jurídico único da Administração Pública direta, das autarquias e das fundações públicas que até então vigia por determinação da norma original do art. 39 da CF. No entanto, após a votação em 1º turno, o relator do projeto na Comissão Especial, alterou a redação final do Substitutivo transferindo o conteúdo da proposta contida no § 2º para o caput do art. 39 da CF. Dessa forma, submeteu-se a um segundo turno de votação matéria rejeitada no primeiro, burlando-se, com isso, o requisito constitucional de aprovação das emendas constitucionais por três quintos dos votos dos membros de cada Casa, em dois turnos de votação. A supressão da norma originária do caput do art. 39 da CF afrontou inequívoca manifestação do Plenário da Câmara dos Deputados que, em 1º turno de votação, rejeitara a mudança pretendida, desrespeitando, assim, o procedimento formal de reforma constitucional, contrariamente à sua supremacia e rigidez. A manobra parlamentar, levada a efeito em segundo turno de votação, descumpriu o § 2º do art. 60 da CF, que exige dupla aprovação por três quintos dos membros da Câmara dos Deputados de proposta de emenda constitucional. A ministra ressaltou, ainda, a vedação do § 5º do art. 60, segundo o qual “a matéria constante de proposta de emenda rejeitada ou havida por prejudicada não pode ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa”. Nesses termos, caracterizada a inconstitucionalidade formal do caput do art. 39 da CF, na forma da EC 19/98, é de se declarar a nulidade da norma, restabelecendo-se a anterior, na forma que concluiu o Plenário no julgamento do pleito de cautelar. Por outro lado, a relatora rejeitou as alegações de existência de inconstitucionalidades formais na (a) alteração da expressão “qualidade do serviço prestado” pela palavra “eficiência”, no caput do art. 37; (b) substituição da expressão “política remuneratória” por “sistema remuneratório”, no § 1º do art. 39; (c) substituição da expressão “disciplinará a aplicação dos recursos orçamentários” pela expressão “disciplinará a aplicação de recursos orçamentários”, no § 7º do art. 39; (d) alteração da expressão “os critérios a serem obedecidos na efetivação da demissão do servidor” por “as normas gerais a serem obedecidas na demissão do servidor”, no § 7º do art. 169; e (e) alteração do singular para o plural da locução “plano de carreira” no inciso V do art. 206. Ponderou que a análise dos textos submetidos à votação na Câmara e no Senado não conduz à conclusão de ter havido alterações substanciais dos conteúdos normativos das referidas normas, tendo sido modificadas por emendas tipicamente redacionais, não havendo de se cogitar, por conseguinte, de inconstitucionalidade formal, conforme verificado no julgamento da medida cautelar. No que tange às demais alegações, alterações promovidas nos art. 37, incisos X e XIII; art. 39, § 1º; art. 41, § 2º, e art. 135 da CF, esclareceu que a isonomia de vencimentos revela critério a ser observado pelo legislador na edição de leis nas quais se cuide de remuneração dos cargos públicos. A previsão da norma originária do art. 39, § 1º, da CF nunca garantiu aos servidores públicos direito à isonomia automática de vencimentos de cargos de atribuições iguais ou assemelhadas aos por eles ocupados. E o art. 37, inciso XIII, veda a vinculação ou equiparação de espécies remuneratórias para efeito de remuneração de pessoal do serviço público. A supressão nos arts. 37, inciso XIII, e 135 da CF, da remissão originariamente feita ao art. 39, § 1º, da CF é consequência da alteração promovida nessa norma pela EC 19/1998, não importando também infringência ao princípio da isonomia. Ademais, a jurisprudência do STF é pacífica quanto à inexistência de direito adquirido a regime jurídico. A alteração do § 2º do art. 41 do Substitutivo, pela qual se incluiu a condicionante “se estável” para a recondução ao cargo de origem, não promoveu mudança no sentido da proposição jurídica. A mencionada condicionante não contraria direitos e/ou garantias individuais (art. 60, § 4º, IV, da CF). Ao contrário, ela está harmonizada com a estabilidade no serviço público. Tem-se, portanto, a um só tempo, o fortalecimento do instituto da estabilidade e a confirmação, na relação estatutária (não contratual) entre servidor e Administração Pública. Por fim, a ministra Cármen Lúcia reafirmou a prejudicialidade do capítulo relativo ao art. 26 da EC 19/1998, já pronunciado no julgamento da cautelar. Em seguida, o julgamento foi suspenso. (1) CF: “Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (...) X – a remuneração dos servidores públicos e o subsídio de que trata o § 4º do art. 39 somente poderão ser fixados ou alterados por lei específica, observada a iniciativa privativa em cada caso, assegurada revisão geral anual, sempre na mesma data e sem distinção de índices; (...) XIII – é vedada a vinculação ou equiparação de quaisquer espécies remuneratórias para o efeito de remuneração de pessoal do serviço público;” (2) CF: “Art. 39. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituirão conselho de política de administração e remuneração de pessoal, integrado por servidores designados pelos respectivos Poderes. § 1º A fixação dos padrões de vencimento e dos demais componentes do sistema remuneratório observará: I – a natureza, o grau de responsabilidade e a complexidade dos cargos componentes de cada carreira; II – os requisitos para a investidura; III – as peculiaridades dos cargos. (...) § 7º Lei da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios disciplinará a aplicação de recursos orçamentários provenientes da economia com despesas correntes em cada órgão, autarquia e fundação, para aplicação no desenvolvimento de programas de qualidade e produtividade, treinamento e desenvolvimento, modernização, reaparelhamento e racionalização do serviço público, inclusive sob a forma de adicional ou prêmio de produtividade.” (3) CF: “Art. 41 (...) § 2º Invalidada por sentença judicial a demissão do servidor estável, será ele reintegrado, e o eventual ocupante da vaga, se estável, reconduzido ao cargo de origem, sem direito a indenização, aproveitado em outro cargo ou posto em disponibilidade com remuneração proporcional ao tempo de serviço.” (4) CF: “Art. 135. Os servidores integrantes das carreiras disciplinadas nas Seções II e III deste Capítulo serão remunerados na forma do art. 39, § 4º.” (5) CF: “Art. 169. A despesa com pessoal ativo e inativo da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios não poderá exceder os limites estabelecidos em lei complementar. (...) § 7º Lei federal disporá sobre as normas gerais a serem obedecidas na efetivação do disposto no § 4º.” (6) CF: “Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios. (...) V – valorização dos profissionais do ensino, garantidos, na forma da lei, planos de carreira para o magistério público, com piso salarial profissional e ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos;” (7) EC 19/1998: “Art. 26. No prazo de dois anos da promulgação desta Emenda, as entidades da administração indireta terão seus estatutos revistos quanto à respectiva natureza jurídica, tendo em conta a finalidade e as competências efetivamente executadas.”
ADI 2135/DF, rel. Min. Cármen Lúcia, julgamento em 3.9.2020. (ADI-2135)
REPERCUSSÃO GERAL
DIREITO CONSTITUCIONAL – TRIBUTOS
COFINS: ampliação da base de cálculo e majoração de alíquota – 2 -
É constitucional a previsão em lei ordinária que introduz a sistemática da não-cumulatividade a COFINS dado que observa os princípios da legalidade, isonomia, capacidade contributiva global e não-confisco. Essa foi a tese de repercussão geral fixada pelo Plenário (Tema 34), ao negar provimento, por maioria, a recurso extraordinário em que discutida a constitucionalidade da ampliação da base de cálculo e da majoração de alíquota da Contribuição para Financiamento da Seguridade Social (COFINS), instituída pela Lei 10.833/2003, resultante da conversão da Medida Provisória 135/2003 (Informativo 844). Quanto ao alegado vício formal, o colegiado, nos termos do voto do ministro Edson Fachin, considerou a jurisprudência da Corte no sentido de não vislumbrar ofensa ao art. 246 da Constituição Federal na hipótese de mera majoração de alíquotas de contribuições sociais. Pela mesma razão, reputou que o presente caso não atrai a aplicação da reserva de lei complementar, haja vista não se tratar de novo tributo. No que se refere à vedação ao efeito confiscatório, concluiu ser juridicamente insustentável buscar guarida nesse princípio em sede de jurisdição constitucional, tendo em conta a orientação segundo a qual a caracterização desse efeito pressupõe a análise de dados concretos e de peculiaridades de cada operação ou situação, tomando-se em conta custos, carga tributária global, margens de lucro e condições pontuais do mercado e de conjuntura econômica. Por fim, adotou o entendimento do Tribunal de que eventuais diferenças entre os regimes de lucro real ou de lucro presumido, inclusive a respeito do direito ao creditamento, não representam ofensa à isonomia ou à capacidade contributiva, porquanto a sujeição ao regime do lucro presumido é uma escolha feita pelo contribuinte, considerado o seu planejamento tributário. Vencido o ministro Marco Aurélio (relator) que conheceu em parte do recurso, e, na parte conhecida, deu-lhe provimento para declarar a inconstitucionalidade da norma. Votou, também, de forma contrária à tese fixada.
RE 570122/RS, rel. orig. Min. Marco Aurélio, red. p/ o ac. Min. Edson Fachin, julgamento em 2.9.2020. (RE-570122)
PRIMEIRA TURMA
DIREITO CONSTITUCIONAL – FUNÇÕES ESSENCIAIS À JUSTIÇA
Ação de improbidade administrativa e atuação de procurador do estado – 2 -
A Primeira Turma, por maioria e em conclusão de julgamento, deu provimento a agravo interno e, em voto médio, deu parcial provimento ao recurso extraordinário, a fim de declarar incompatível com a Constituição Federal (CF) o entendimento de que o governador do estado deve autorizar a propositura de ação de improbidade pela procuradoria. Determinou, ainda, o retorno dos autos ao juízo de origem, para que prossiga o julgamento como entender de direito. No acordão impugnado, o tribunal de origem compreendeu que procurador do estado de Sergipe não pode ajuizar ação civil pública sem anuência do procurador-geral e autorização do governador daquela unidade da Federação ( Informativo 952 ). Na Turma, prevaleceu o voto médio do ministro Roberto Barroso, que foi acompanhado pela ministra Rosa Weber. Em maior extensão, os ministros Alexandre de Moraes e Luiz Fux deram provimento integral ao agravo e ao recurso extraordinário. Entenderam que a restrição imposta pelo tribunal a quo não encontra respaldo na lei orgânica da procuradoria-geral — Lei Complementar sergipana 27/1996 — e ofende o art. 132 da CF (1). Logo, não poderia ser exigida a autorização do governador, tampouco a anuência do procurador-geral nas ações de improbidade. Já o ministro Marco Aurélio (relator) negou provimento ao agravo regimental e ao recurso extraordinário. A seu ver, os autos versam matéria estritamente legal. O relator sublinhou que o pronunciamento atacado mediante recurso extraordinário envolveu a interpretação de legislação local. (1) CF: “Art. 132. Os Procuradores dos Estados e do Distrito Federal, organizados em carreira, na qual o ingresso dependerá de concurso público de provas e títulos, com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil em todas as suas fases, exercerão a representação judicial e a consultoria jurídica das respectivas unidades federadas. parágrafo único. Aos procuradores referidos neste artigo é assegurada estabilidade após três anos de efetivo exercício, mediante avaliação de desempenho perante os órgãos próprios, após relatório circunstanciado das corregedorias.”
ARE 1165456 AgR/SE, rel. orig. Min. Marco Aurélio, red. p/ o ac. Min. Roberto Barroso, julgamento em 1º.9.2020. (ARE-1165456)
SEGUNDA TURMA
DIREITO CONSTITUCIONAL – PODER JUDICIÁRIO
Justiça competente: arquivamento de inquérito e crime eleitoral -
A Segunda Turma, ante o empate na votação, deu provimento a agravo regimental para determinar a devolução dos autos à Justiça Eleitoral. No caso, a investigação em curso foi inicialmente instaurada no âmbito do Supremo Tribunal Federal (STF), com o propósito de, a partir de dados revelados em acordo de colaboração premiada, apurar possível realização de pagamentos indevidos a partidos políticos, objetivando propiciar maior tempo de propaganda televisiva na campanha eleitoral de 2014 (Inq 4.432). Na sequência, em razão de superveniente perda da prerrogativa de foro do investigado e de decisão proferida no âmbito da PET 7.569, determinou-se a remessa dos autos do inquérito à Justiça Eleitoral, por associarem-se os fatos com suposta prática de delito eleitoral. Em seguida, ao acolher manifestação do Ministério Público Eleitoral (MPE), a autoridade reclamada ordenou o arquivamento do inquérito instaurado em relação à suposta prática de crime eleitoral previsto no art. 350 do Código Eleitoral (CE), por ausência de justa causa, e declinou da competência em favor da Justiça Federal, para processamento e julgamento dos crimes comuns remanescentes. Contra essa decisão, foi ajuizada a presente reclamação. O ministro Edson Fachin (relator), ao negar seguimento à reclamação, por meio de decisão monocrática, afirmou, em suma, que o superveniente arquivamento da investigação referente à infração afeta aos interesses eleitorais, promovido a pedido do MPE e objeto da devida chancela pelo juízo competente, acarreta legítima modificação processual apta, em tese, a repercutir na definição de competência, sem que tal proceder, por si, constitua afronta à autoridade da decisão reclamada. A decisão foi objeto de impugnação por agravo regimental. Prevaleceu o voto do ministro Gilmar Mendes que, acompanhado do ministro Ricardo Lewandowski, deu provimento ao agravo regimental. Para o ministro, houve violação à autoridade da decisão do STF proferida nos autos do Inquérito 4.432, uma vez que as instâncias inferiores não observaram as diretrizes que resultaram na definição da competência da Justiça Eleitoral para apuração e processamento dos fatos. Ressaltou, ademais, que o MPE promoveu o arquivamento dos delitos previstos no art. 350 do CE imediatamente após o recebimento dos autos, não tendo sequer empreendido qualquer diligência investigativa para apurar os indícios de tais crimes. Além disso, o Juízo Eleitoral arquivou o inquérito e remeteu os autos à Justiça Federal, mesmo diante da expressa decisão dessa Corte que fixou sua competência para supervisão dos fatos. As instâncias inferiores, portanto, ignoraram os termos da decisão reclamada, que assentou a competência da Justiça Eleitoral para o processamento e a apuração dos fatos em questão. Os ministros Edson Fachin e Cármen Lúcia negaram provimento ao agravo regimental.
Rcl 34805 AgR/DF, rel. Min. Edson Fachin, red. p/ o ac. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 1º.9.2020. (Rcl-34805)