Informativo do STF 849 de 02/12/2016
Publicado por Supremo Tribunal Federal
PLENÁRIO
Compensação judicial de perda financeira e separação de Poderes
O Plenário julgou improcedente pedido formulado em ação cível originária em que se discutiam os critérios de compensação financeira aos Estados-Membros em razão da perda financeira decorrente da política de exoneração do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) sobre as exportações. No caso, o Estado-Membro requeria a aplicação de determinado coeficiente sobre o valor liberado pela União para compensar as perdas arrecadatórias com a desoneração das exportações resultantes da Lei Complementar (LC) 87/1996. O Colegiado ponderou que a desoneração tributária das operações de exportação, fator influente na receita dos Estados-Membros, foi inicialmente compensada pelos mecanismos erigidos pela LC 87/1996. O dispositivo, que trata do ICMS, institui um fundo para compensação das perdas dos Estados-Membros em razão das inovações isentivas. No entanto, sua redação foi alterada pela LC 102/2000 e pela LC 115/2002. O interregno entre a LC 87/1996 e a LC 115/2002 recebeu tratamento transitório. A transferência de recursos a título de compensação realizava-se nos termos do Anexo da LC 87/1996, que implementou uma espécie de “seguro garantia” ou “seguro receita”, no qual a compensação financeira a ser efetuada pela União tinha, em sua base de cálculo, relação direta com o montante que seria recebido pelos Estados-Membros a título de ICMS nas operações de exportação. A seu turno, a LC 102/2000, ao alterar a LC 87/1996, manteve a forma de cálculo com base nas perdas decorrentes da desoneração das exportações. A seguir, a LC 115/2002 inaugurou novo sistema, segundo o qual o montante a ser repassado pela União aos Estados-Membros passou a ser determinado com base em fatores políticos, definidos na Lei Orçamentária da União, após aprovação pelo Congresso Nacional, substituindo o “seguro garantia”. Finalmente, a Emenda Constitucional 42/2003, fundada na mesma razão de ser, constitucionalizou a obrigação dos repasses devidos pela União aos Estados-Membros em decorrência da desoneração das exportações (ADCT, art. 91: “A União entregará aos Estados e ao Distrito Federal o montante definido em lei complementar, de acordo com critérios, prazos e condições nela determinados, podendo considerar as exportações para o exterior de produtos primários e semi-elaborados, a relação entre as exportações e as importações, os créditos decorrentes de aquisições destinadas ao ativo permanente e a efetiva manutenção e aproveitamento do crédito do imposto a que se refere o art. 155, § 2º, X, a”). Assim, a regulamentação definitiva da matéria foi atribuída a uma nova lei complementar ainda não editada, a qual deve dispor sobre os novos critérios de definição do montante a ser entregue pela União aos Estados e ao Distrito Federal, seus prazos e condições. A referida emenda, em dispositivo próprio, prevê que, até a edição da nova lei complementar, devem ser adotados para o repasse os critérios estabelecidos no Anexo da LC 87/1996, com a redação da LC 115/2002. Portanto, o próprio texto constitucional transitório já previu a solução a ser adotada até a vinda da nova lei complementar. Dessa forma, não há qualquer espaço para o Poder Judiciário alterar disposição constitucional já existente sobre o tema. Portanto, o Supremo Tribunal Federal não pode atuar “contra legem”, impossibilitando a alteração do índice de repasse do montante devido pela União. Tal atitude equivaleria a uma inovação no ordenamento jurídico contra o direito posto, violando a cláusula da separação dos Poderes.
ACO 1044/MT, rel. Min. Luiz Fux, julgamento em 30.11.2016. (ACO-1044)
Federalismo fiscal e omissão legislativa - 2
O Plenário, em conclusão, julgou procedente ação direta de inconstitucionalidade por omissão ajuizada em face de alegada lacuna legislativa, no tocante à edição, pelo Congresso Nacional, da lei complementar prevista no art. 91 do ADCT, incluído pela Emenda Constitucional 42/2003 (“Art. 91. A União entregará aos Estados e ao Distrito Federal o montante definido em lei complementar, de acordo com critérios, prazos e condições nela determinados, podendo considerar as exportações para o exterior de produtos primários e semi-elaborados, a relação entre as exportações e as importações, os créditos decorrentes de aquisições destinadas ao ativo permanente e a efetiva manutenção e aproveitamento do crédito do imposto a que se refere o art. 155, § 2º, X, ‘a’”) — v. Informativo 848. O Colegiado declarou haver mora, por parte do Congresso Nacional, em editar a aludida lei complementar. Fixou, por maioria, o prazo de doze meses para que seja sanada a omissão. No ponto, ficou vencido o ministro Marco Aurélio, que não determinava prazo. O Tribunal estabeleceu, também por decisão majoritária, que, na hipótese de o mencionado prazo transcorrer “in albis”, caberá ao Tribunal de Contas da União (TCU): a) fixar o valor total a ser transferido anualmente aos Estados-Membros e ao Distrito Federal, considerando os critérios dispostos no art. 91 do ADCT, a saber, as exportações para o exterior de produtos primários e semielaborados, a relação entre as exportações e as importações, os créditos decorrentes de aquisições destinadas ao ativo permanente e a efetiva manutenção e aproveitamento do crédito do imposto a que se refere o art. 155, § 2º, X, “a”, do texto constitucional; b) calcular o valor das quotas a que cada um fará jus, levando em conta os entendimentos entre os Estados-Membros e o Distrito Federal realizados no âmbito do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz). Determinou, ainda, que se comunique ao TCU, ao Ministério da Fazenda, para os fins do disposto no § 4º do art. 91 do ADCT, e ao Ministério do Planejamento, Desenvolvimento e Gestão, para adoção dos procedimentos orçamentários necessários ao cumprimento da presente decisão, notadamente no que se refere à oportuna inclusão dos montantes definidos pelo TCU na proposta de lei orçamentária anual da União. Vencidos, no particular, os ministros Marco Aurélio, Teori Zavascki e Cármen Lúcia (Presidente), que não subscreviam as determinações dirigidas ao TCU. O Colegiado considerou atendidos os requisitos da legitimidade ativa e da pertinência temática. Afinal, nos termos da jurisprudência da Corte, é necessário haver pertinência entre o objeto da ação e a defesa do interesse em causa. No caso dos governadores, a legitimidade está condicionada à repercussão do ato normativo impugnado nas atividades de interesse dos Estados-Membros, como na hipótese em debate. No mérito, entendeu que o tema envolve autonomia financeira e partilha de recursos tributários. Embora o texto original da Constituição tivesse promovido esforços para descentralizar as receitas, a União, por meio das contribuições (cuja receita não é compartilhada com os demais entes), conseguiu reverter o quadro de partilha, concentrando em seu poder a maior parte dos recursos tributários arrecadados. A partir do Plano Real, houve incremento da participação das receitas de contribuições no total de receitas correntes da União, sem o respectivo incremento na participação das receitas tributárias. Assim, se, por um lado, o constituinte desenhou um quadro fiscal fortemente descentralizado quanto aos impostos, por outro, deixou nas mãos da União, livres de qualquer partilha de arrecadação, outra espécie tributária: as contribuições, especialmente as sociais. Nesse contexto, a edição da Emenda Constitucional 42/2003 traduziu um esforço de desoneração de exportações, com impacto nas finanças estaduais. Por consequência, elevou ao plano constitucional tanto a tentativa de desoneração da Lei Complementar 87/1996 quanto a obrigatoriedade de repasses mensais a cargo da União. Além disso, as exportações brasileiras foram completamente removidas do campo de incidência do ICMS. Criou-se, portanto, uma imunidade constitucional, em prejuízo de uma fonte de receita pública estadual. Se, por um lado, a modificação prestigia e incentiva as exportações em prol de toda a Federação, por outro, traz consequências severas sobretudo para quem se dedica à exportação de produtos primários. Por isso, para compensar a perda de arrecadação imposta pela Emenda Constitucional 42/2003, estabeleceu-se, no art. 91 do ADCT, uma fórmula de transferência constitucional obrigatória da União em favor dos Estados-Membros e do Distrito Federal. Esse mecanismo, em tese, poderia representar importante instrumento de federalismo cooperativo, de sorte a atenuar os impactos financeiros decorrentes da desoneração promovida pela Emenda Constitucional 42/2003 nas contas estaduais. Entretanto, a lei complementar prevista no art. 91 do ADCT nunca foi editada e, até hoje, a regra do § 3º deste dispositivo continua sendo aplicada. A Corte ainda assinalou que existe um dever constitucional de legislar, previsto no art. 91 do ADCT, e uma omissão legislativa que perdura por mais de dez anos. Isso traz consequências econômicas relevantes, sobretudo em relação a determinados Estados-Membros. Além disso, embora falte a lei complementar exigida pela Constituição, a legislação em vigor traz critérios provisórios para os repasses. Isso, entretanto, não basta para afastar a omissão em debate. Ao contrário, o sentido de provisoriedade do § 2º do art. 91 do ADCT só confirma a lacuna legislativa e não tem o condão de convalidá-la. Está, portanto, configurado o estado de inconstitucionalidade por omissão, em razão de mora do Poder Legislativo. Diante disso, considerou necessário adotar solução no sentido de, decorrido “in albis” o prazo de doze meses estipulado para que o Legislativo saneie a omissão, caber ao TCU, enquanto não sobrevier lei complementar, a competência para definir anualmente o montante a ser transferido, na forma do art. 91 do ADCT, considerando os critérios ali dispostos. Quanto à repartição entre os diversos entes federados, propôs ser feita nas condições estabelecidas pelo Confaz, de modo que a distribuição de recursos leve em conta o ICMS desonerado nas exportações de produtos primários e semielaborados e os créditos de ICMS decorrentes de aquisições destinadas ao ativo permanente. Por fim, explicou que o TCU é a instituição mais adequada para cumprir temporariamente essa incumbência (CF, art. 161, parágrafo único). Ademais, é o órgão escolhido pelo legislador para o cálculo da participação de cada Estado-Membro ou do Distrito Federal na repartição da receita tributária a que se refere o art. 159, II, da CF. Caberá, assim, aos Estados-Membros e ao Distrito Federal proceder na forma do § 4º do art. 91 do ADCT, de modo a apresentar à União, nos termos das instruções baixadas pelo Ministério da Fazenda, as informações relativas ao imposto de que trata o art. 155, II, da CF, declaradas pelos contribuintes que realizarem operações ou prestações com destino ao exterior, a fim de subsidiar o TCU na fixação do montante a ser transferido, bem como das quotas a que terão direito os entes federados. Advindo a lei complementar, cessa a competência da Corte de Contas, conferida de forma precária e excepcional.
ADO 25/DF, rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 30.11.2016. (ADO-25)
Parte 1:
Parte 2:
PSV: proposta de cancelamento de súmula vinculante
O Tribunal, por maioria, rejeitou proposta de cancelamento da Súmula Vinculante 5 (“A falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a Constituição”). Para o proponente, Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (CFOAB), o procedimento de edição da referida súmula vinculante não teria observado os pressupostos estabelecidos pela Constituição Federal (CF), entre os quais a exigência de reiteradas decisões da Corte sobre a matéria. Além dos vícios formais de inconstitucionalidade, alegava que a Súmula Vinculante 5 afrontaria materialmente o conteúdo normativo axiológico da CF por contrariar o direito fundamental ao contraditório e à ampla defesa. Em vista disso, postulava-se seu cancelamento. Prevaleceu o entendimento do ministro Ricardo Lewandowski, no que acompanhado pelos ministros Roberto Barroso, Teori Zavascki, Rosa Weber, Dias Toffoli e Gilmar Mendes. Ao rejeitar a proposta, asseverou que o CFOAB buscou refutar cada um dos fundamentos que serviram de base para o julgamento do Recurso Extraordinário 434.059/DF (DJe de 12.9.2008). Rememorou que, no referido julgamento, o Supremo Tribunal Federal (STF), por unanimidade, concluiu que a falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar não ofende a CF. Observou, também, que, durante as discussões em plenário, não se proibiu a participação dos advogados nos processos administrativos disciplinares. Pelo contrário, determinou-se que a Administração Pública viabilizasse a presença de advogado nesses procedimentos administrativos, bem como cientificasse os servidores públicos acerca da possibilidade de contratação desse profissional para sua defesa. Para o ministro, mero descontentamento ou divergência quanto ao conteúdo do verbete não propicia a reabertura das discussões sobre tema já debatido à exaustão pelo STF. Ademais, para se admitir a revisão ou o cancelamento de súmula vinculante, é necessário que seja evidenciada a superação da jurisprudência da Corte no trato da matéria, e que haja alteração legislativa quanto ao tema ou modificação substantiva do contexto político, econômico ou social. Por fim, pontuou que o CFOAB não demonstrou a presença dos pressupostos de admissibilidade e não se desincumbiu da exigência constitucional de apresentar decisões reiteradas do STF que demonstrem a necessidade de alteração ou cancelamento da Súmula Vinculante 5. Tal circunstância impossibilita a análise da presente proposta. Para o ministro Roberto Barroso, há certa hesitação em equiparar plenamente o processo judicial ao processo administrativo, entre outras razões, pela possibilidade de revisão judicial deste último. Sob certos aspectos, no entanto, entendeu que o direito disciplinar sancionatório deve observar cautelas inerentes ao processo penal. Consignou que os precedentes relativos ao cometimento de falta grave no âmbito do sistema penitenciário não demonstram ter havido mudança da jurisprudência da Corte acerca da aplicação da Súmula Vinculante 5. Esta se refere ao típico processo administrativo disciplinar no âmbito da Administração Pública e não propriamente no de infrações cometidas no sistema penitenciário. Afirmou não ter havido mudança substancial na legislação, na jurisprudência ou na percepção da sociedade, a justificar a revisão ou o cancelamento da Súmula Vinculante 5. De acordo com o ministro, a súmula vinculante deve ter certo grau de estabilidade, a qual apenas deve ser removida por fatos suficientemente relevantes, não observados na espécie. Para o ministro Teori Zavascki, a edição de uma súmula vinculante, inclusive para se dar autoridade a ela, precisa atender aos requisitos apresentados na CF. Esse mesmo cuidado deve ser observado em caso de revisão, modificação ou cancelamento de súmulas, sob pena de se negar autoridade e se transformar o verbete vinculante num precedente qualquer, eliminando sua função no sistema, principalmente a de dar estabilidade e segurança às decisões da Corte. Entendeu que, após a edição da Súmula Vinculante 5, não houve alteração da jurisprudência STF sobre a matéria, de modo a não haver motivo para o cancelamento do verbete. Salientou que a referida súmula vinculante não eliminou o direito de defesa por advogado no âmbito dos processos administrativos disciplinares. Nela consta apenas que a presença desse profissional não é obrigatória em tais procedimentos. Ressaltou que, caso se reconheça que a Súmula Vinculante 5 viola a Constituição, também deveria ser reconhecida a inconstitucionalidade das normas que, em processo judicial, dispensam a presença de advogado (nos processos trabalhistas, nos juizados de pequenas causas, nos juizados especiais federais, etc.). Assentou que os processos administrativos estão sujeitos a ampla revisão no âmbito jurisdicional, no qual haverá a defesa técnica necessária. Concluiu que o cancelamento da súmula restauraria situação de insegurança total, pois se devolveria à jurisdição normal uma discussão que a súmula buscou eliminar. Vencidos os ministros Marco Aurélio, Edson Fachin, Luiz Fux, Celso de Mello e Cármen Lúcia (Presidente), que acolhiam a proposta de cancelamento da Súmula Vinculante 5. O ministro Marco Aurélio observava, inicialmente, que sua edição implicou a superação da Súmula 343 do Superior Tribunal de Justiça (STJ) (“É obrigatória a presença de advogado em todas as fases do processo administrativo disciplinar”) e que a referida proposta de cancelamento foi ajuizada pelo CFOAB dois meses e seis dias após a edição do verbete vinculante. Ponderava que deveria haver um cuidado maior na observância da norma constitucional que vincula a edição de verbetes vinculantes a reiterados pronunciamentos do Tribunal. Afirmava que a edição da Súmula Vinculante 5 foi motivada pelo que decidido no julgamento do Recurso Extraordinário 434.059/DF (DJe de 12.9.2008) e do Mandado de Segurança 24.961/DF (DJU de 1.4.2004), o qual, aliás, versou sobre tema que nada tinha a ver com processo administrativo disciplinar. Consignou, ademais, que, tanto quanto possível, deve ser garantida a participação de alguém que domine a ciência do Direito, ao menos para que o processo administrativo não seja simplesmente inquisitorial. O ministro Edson Fachin, preliminarmente, afastava qualquer objeção quanto ao conhecimento do pleito. Observava que, no julgamento das Propostas de Súmulas Vinculantes 13 e 54, as quais tinham por objeto o cancelamento e a revisão das Súmulas Vinculantes 11 e 25, a Corte assentou que, para se admitir a revisão ou o cancelamento de súmula vinculante, seria necessário evidenciar a superação da jurisprudência do STF no trato da matéria, a alteração legislativa quanto ao tema ou, ainda, a modificação substantiva do contexto político, econômico ou social. Ponderava que, embora haja diversos precedentes da Corte no sentido da aplicação da Súmula Vinculante 5, o STF tem afastado a incidência do verbete para apurar infrações disciplinares no âmbito de execução penal. Tais precedentes abriram espaço para debate, rediscussão e eventual cancelamento da súmula. Quanto ao mérito, entendia que o ajuste da jurisprudência parece ter acompanhado o alcance dado — sobretudo pelas organizações internacionais de direitos humanos — aos princípios do contraditório e da ampla defesa. O ministro ressaltava, ainda, que a experiência do direito comparado tem estendido aos procedimentos disciplinares penitenciários as mesmas garantias do processo penal e que há na jurisprudência comparada e na doutrina brasileira uma tendência de aproximação entre o processo administrativo disciplinar e o processo penal. Ponderava que, não raro, as sanções de caráter administrativo assumem características muito próximas às sanções penais. Essa proximidade se dá pelo menos à luz de três critérios pelos quais as garantias penais devem ser estendidas aos acusados administrativos: a) a qualificação dada aos fatos pelo direito interno; b) a própria natureza da infração; e c) o grau de severidade da sanção aplicável ao acusado. Para ele, a riqueza da casuística coletada da experiência internacional está a revelar grande espaço de conformação do chamado direito à assistência legal aos procedimentos disciplinares e ao direito administrativo sancionatório. Destacava que as súmulas vinculantes acabam por colocar um selo jurídico em conquistas hermenêuticas, logo é preciso ter cautela a fim de evitar que o enunciado sumulado se torne autônomo. É certo que a adequada interpretação da súmula vinculante sempre depende dos casos que lhe deram origem e que, particularmente quanto à Súmula Vinculante 5, o principal precedente utilizado foi o Recurso Extraordinário 434.059/DF. Na oportunidade, o Tribunal definiu o direito à defesa, consagrado no art. 5º, LV, da CF, como o direito de informação, de manifestação e de ver os argumentos do interessado considerados. A referida decisão mostrou-se adequada àquele caso, da mesma forma que essa orientação, posteriormente sedimentada no verbete sumulado, serviu como razão de decidir em diversos outros julgados desta Corte. Sendo assim, não há falar em correção da solução adotada relativamente aos casos em que foi empregada. No entanto, as exceções reconhecidas e, assim, o alcance possível de ser atribuído ao direito de ampla defesa, à luz do indicado na jurisprudência comparada, permite compreender que o verbete sumular pode, de fato, prejudicar eventual aperfeiçoamento da compreensão do Tribunal sobre a matéria. Ressaltava, ademais, que o elastecimento do alcance do direito de defesa tem respaldo no próprio texto constitucional (arts. 5º, LV, e 133 da CF). Consignava que a Lei 9.784/1999 prevê, em seu art. 3º, IV, o direito a fazer-se assistir facultativamente por advogado, salvo quando obrigatória a representação por força de lei. O mencionado dispositivo legal reconheceu ao legislador espaço para conformação de situações em que a presença de advogado poderia ser considerada obrigatória. Além disso, não existe vedação constitucional ao reconhecimento do direito à assistência legal obrigatória no processo administrativo disciplinar. Concluía que, na espacialidade que se abre com o cancelamento da Súmula Vinculante 5, haveria a possibilidade de casuística de graduação sem ofensa a direitos fundamentais nem violação das prerrogativas da administração. Nesses termos, a súmula deve contribuir para a formação de uma cultura jurídica que respeite a integralidade do direito e a institucionalização de uma tradição. Por essa razão, em vista de um espaço ainda não sedimentado de conformação de um direito fundamental, o debate acerca do alcance do direito à assistência legal deve ser possível nas vias ordinárias, motivo por que a proposta de cancelamento da Súmula Vinculante 5 deveria ser acolhida. O ministro Luiz Fux, por sua vez, afirmava que a expressão “aos acusados em geral são assegurados o contraditório e a ampla defesa”, contida na Constituição (art. 5º, LV), significa que, toda vez que puder haver invasão na esfera jurídica de um acusado, ele tem de ter assegurado o contraditório e a ampla defesa. Ressaltou, ademais, que o art. 156 da Lei 8.112/1991 contém norma expressa em sentido semelhante (“É assegurado ao servidor o direito de acompanhar o processo pessoalmente ou por intermédio de procurador, arrolar e reinquirir testemunhas, produzir provas e contraprovas e formular quesitos, quando se tratar de prova pericial”). Asseverava que, seja no âmbito administrativo ou no âmbito judicial, é preciso observar essas garantias às quais a CF se refere, pois hoje a hermenêutica constitucional reclama que haja uma máxima efetividade dos direitos fundamentais consagrados na Carta Magna. Lembrava que a Súmula 343 do STJ foi editada com fundamento no entendimento de que a “presença obrigatória de advogado constituído ou de defensor dativo é elementar mesmo da garantia constitucional do direito à ampla defesa com os meios e recursos a ela inerentes, quer se trate de processo judicial ou administrativo, porque tem como sujeitos não apenas litigantes, mas acusados num sentido geral”. O ministro Celso de Mello ponderava que a observância dos direitos e garantias assegurados pela CF traduz fator de legitimação da atividade estatal, ainda mais quando o poder do Estado objetiva a imposição de sanção de natureza disciplinar a seus agentes e servidores. Enfatizava que, nos procedimentos administrativos, a Administração Pública não pode transgredir postulados básicos, notadamente a garantia do “due process”, que representam prerrogativa indisponível de índole constitucional, assegurada à generalidade das pessoas e não apenas aos agentes e servidores públicos. Mesmo em se tratando de procedimento administrativo, ninguém pode ser privado de sua liberdade, de seus bens ou de seus direitos, sem o devido processo legal, sobretudo naqueles casos em que se estabelece uma relação de polaridade conflitante entre o Estado, de um lado, e o indivíduo — inclusive o servidor —, de outro. Citava a jurisprudência da Corte, que se fixou no sentido de assistir ao interessado — no caso servidor público, mesmo em procedimentos de índole administrativa, inclusive naqueles de caráter eminentemente disciplinar, nos quais a Administração Pública exerce típica jurisdição censória —, como direta emanação da própria garantia fundamental do “due process”, a prerrogativa indisponível do contraditório e da plenitude de defesa, com os meios e recursos a ela inerentes, consoante prescreve a Constituição da República (art. 5º, LIV e LV). Destacava que o respeito às prerrogativas profissionais do advogado constitui uma garantia da própria sociedade e das pessoas em geral. O advogado, nesse contexto, desempenha papel essencial na proteção e na defesa de direitos, garantias e liberdades fundamentais. Concluía, dessa forma, que a falta de defesa técnica por advogado no processo administrativo disciplinar ofende a CF. A ministra Cármen Lúcia ponderava que a redação da Súmula Vinculante 5 leva à interpretação equivocada de que toda e qualquer falta de defesa técnica não ofende a Constituição, o que muitas vezes pode de fato ocorrer. PSV 58/DF, julgamento em 30.11.2016. (PSV-58) Parte 1: Parte 2: Parte 3:
Recebimento de denúncia: existência de indícios mínimos de autoria e materialidade do delito
O Plenário, por maioria, recebeu parcialmente denúncia oferecida em face de senador por suposta prática de crime de peculato, previsto no art. 312 do Código Penal (CP). De acordo com a acusação, o senador, no período de janeiro a julho de 2005, teria desviado recursos públicos da chamada verba indenizatória (destinada a despesas relacionadas ao exercício do mandato parlamentar), para pagar pensão alimentícia à filha. A denúncia ainda imputava ao senador a suposta prática dos crimes de falsidade ideológica e de uso de documento falso, previstos nos arts. 299 e 304 do CP, respectivamente. Conforme narrado na peça acusatória, ele teria inserido e feito inserir, em documentos públicos e particulares, informações diversas das que deveriam ser escritas, com o propósito de alterar a verdade sobre fato juridicamente relevante (sua capacidade financeira para custear despesas da referida pensão). Esses documentos teriam sido utilizados pelo senador para subsidiar sua defesa nos autos de uma Representação do Conselho de Ética e Decoro Parlamentar do Senado Federal. Ainda segundo a denúncia, o parlamentar, ao prestar contas dos valores recebidos a título de verba indenizatória, apresentou notas fiscais emitidas em seu nome por empresa locadora de veículos. Entretanto, os valores referentes à contraprestação real da locação de veículos não foram encontrados na análise de extratos bancários. Além disso, havia incongruência nos dados constantes em notas fiscais de produtor rural, Guias de Trânsito Animal (GTAs), declarações de vacinações contra febre aftosa e declaração de Imposto de Renda de Pessoa Física (IRPF), relativos ao número de animais vendidos e os efetivamente transportados. A defesa, por sua vez, alegava capacidade financeira do acusado, tendo em conta os seus subsídios como senador e os ganhos percebidos como pecuarista. Diante do exposto, o Tribunal declarou a extinção da punibilidade ante a incidência da prescrição, quanto aos crimes de falsidade ideológica e de uso de documento falso, no que se referia aos documentos particulares (notas fiscais de produtor, recibos de compra e venda de gado, declarações de IRPF, contrato de mútuo e livros-caixa de atividade rural). Reconheceu, por maioria, que as notas fiscais e os livros-caixa seriam documentos privados, pois só poderiam ser considerados públicos aqueles em cuja elaboração, de alguma forma, houvesse a participação de funcionários públicos e aqueles expressamente equiparados em lei. A Corte observou, também, que, embora a emissão das notas fiscais fosse autorizada, regulamentada e padronizada por critérios definidos por entes públicos encarregados da arrecadação tributária, a confecção desses documentos estaria integralmente a cargo do particular, ou seja, não haveria a participação de funcionário público antes ou durante a sua confecção. Quanto aos livros-caixa, o Plenário entendeu não incidir o disposto no art. 297, § 2º, do CP. Aduziu não ter sido demonstrado que o acusado tivesse sua atividade rural na forma estabelecida pelo art. 971 do Código Civil (CC). Salientou que a atividade rural só está sujeita ao regime jurídico empresarial (hipótese em que se poderia falar em livros mercantis) quando o produtor expressamente organiza seus negócios dessa maneira, compreensão sintetizada pelo Enunciado 202 do Centro de Estudos da Justiça Federal (“O registro do empresário ou sociedade rural na Junta Comercial é facultativo e de natureza constitutiva, sujeitando-se ao regime jurídico empresarial. É inaplicável esse regime ao empresário ou sociedade rural que não exercer tal opção”). Assim, dada a vedação de analogia “in malam partem” no âmbito do direito penal, o art. 297, § 2º, do CP, ao equiparar os livros mercantis aos documentos públicos para fins penais, não pode ser estendido ao ponto de se tomar por público um livro-caixa não mercantil. O Colegiado, por maioria, também rejeitou a denúncia, por inépcia, quanto aos crimes de falsidade ideológica e de uso de documento falso, relativamente aos documentos públicos (GTAs e declarações de vacinação contra febre aftosa). Entendeu não haver sido observado o art. 41 do Código de Processo Penal (CPP), que exige a exposição do fato criminoso com todas as suas circunstâncias. Asseverou que as conclusões dos peritos que subsidiaram a denúncia decorrem do confronto de informações conflitantes em dois conjuntos de documentos, ou seja, GTAs em confronto com notas fiscais e declarações de vacinações, ou ainda, com a declaração de IRPF. Tal confronto não permite, à evidência, cumprir com o disposto no citado dispositivo do CPP. A inverdade emergente do documento ideologicamente falso é intrínseca ao próprio documento. Logo, para imputar a falsidade ideológica de uma dada GTA, cabe ao Ministério Público demonstrar e apontar na denúncia informação específica do documento em desacordo com a verdade, não bastando a afirmação de estar em desacordo com outros documentos. Vencidos, quanto a essa questão, os ministros Roberto Barroso, Rosa Weber e Marco Aurélio, que recebiam a denúncia por considerarem-na uma narrativa clara e compreensível dos fatos, de modo a permitir a ampla defesa do acusado, e capaz de fornecer elementos suficientes da existência de indícios. Para o ministro Roberto Barroso, a acusação teria demonstrado, de forma inequívoca, a manifesta incongruência entre os dois conjuntos de documentos, a revelar que provavelmente um dos dois seria ideologicamente falso, ou pelo menos haveria indícios de uma falsidade, mas os livros-caixa, dos quais se poderiam colher os registros para desfazer a confusão, também não teriam sido escriturados adequadamente. Portanto, estaria caracterizada uma situação não de inépcia, mas de necessária produção posterior de provas, para mais esclarecimentos. Concluía que, para não se receber uma denúncia, seria preciso haver o convencimento da não existência de plausibilidade na imputação de falsidade ideológica em um dos dois documentos, o que não ocorreria no caso concreto. Por fim, os ministros Roberto Barroso e Marco Aurélio ainda atribuíam às notas fiscais de produtor rural e aos livros-caixa a natureza de documento público. No tocante ao crime de peculato, o Plenário entendeu estarem presentes indícios de autoria e materialidade minimamente suficientes ao recebimento da peça acusatória. Evidenciou a existência de relação próxima entre o acusado e um dos sócios da empresa locadora de veículos, contra o qual já haveria indícios de ser intermediário do acusado na aquisição de empresas de comunicação. Além disso, teria sido celebrado um contrato de mútuo fictício entre o acusado e a empresa locadora com fins de comprovar, perante o Conselho de Ética do Senado Federal, sua capacidade financeira para pagar a pensão alimentícia. A despeito de reconhecida a prescrição quanto ao delito de falsidade ideológica do contrato em questão, a constatação de sua suposta realização, sem que o acusado, suposto mutuante, o tivesse declarado ao Fisco nem a empresa registrado qualquer valor a título de remuneração do capital emprestado, consiste em indício dessa relação de estranha proximidade entre o acusado e os sócios da empresa locadora de veículos. Ademais, considerou-se o fato de o acusado, ao prestar contas dos valores recebidos a título de verba indenizatória, ter apresentado notas fiscais emitidas em seu nome pela aludida empresa, as quais se destinavam ao aluguel de veículos. Entretanto, mediante análise dos extratos bancários, tanto da referida empresa quanto do próprio acusado, não foram encontrados os lançamentos correspondentes ao efetivo pagamento dos valores constantes das notas fiscais. Relativamente à alegação da defesa no sentido de os pagamentos de locação terem sido realizados em espécie, a Corte, de início, mencionou o fato de se tratar de vultosa quantia. Ponderou que, apesar de inexistir vedação quanto ao adimplemento de compromissos em dinheiro, a opção pela realização de pagamentos por serviços mensais em espécie, ainda mais quando dotados de certa regularidade, é elemento de convicção que, aliado a outros indícios, não pode ser desprezado. Atentou para o fato de mais da metade do valor total da verba indenizatória para cobrir despesas com o exercício do mandado parlamentar ser justamente direcionada ao pagamento de aluguel de veículos, em localidade diversa de onde o acusado exercia seu mandato, ainda que em sua base eleitoral. Vencidos, quanto a esse ponto, os ministros Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes, que não recebiam a denúncia por reputá-la inepta. O ministro Dias Toffoli frisava que o fato de não terem sido encontrados lançamentos de débitos e créditos nos extratos bancários não constituiria indício suficiente da inexistência da prestação do serviço, ou seja, não haveria nexo de causalidade entre um dado e outro. Ademais, a empresa locadora teria emitido as notas fiscais relativas à prestação de serviço, cuja regularidade se presumiria, não havendo uma impugnação contra elas. Sequer teria sido aprofundada a investigação a fim de se coligirem elementos idôneos que indicassem que os serviços não teriam sido prestados. Acrescentava que a insuficiência narrativa da denúncia também poderia ser vista sob o ângulo da falta da justa causa, desde já, para a ação penal. Afinal, a imputação de peculato, na forma como deduzida, constituiria mera conjectura da acusação. O ministro Ricardo Lewandowski salientava que, no caso, tendo em conta a fragilidade dos indícios, seria preciso respeitar o “in dubio pro reo”. Inq 2593/DF, rel. Min. Edson Fachin, julgamento em 1º.12.2016. (Inq-2593) Parte 1: Parte 2: Parte 3: Parte 4: Video:
PRIMEIRA TURMA
Incitação à discriminação religiosa e proselitismo
A Primeira Turma, por maioria, deu provimento a recurso ordinário em “habeas corpus” para trancar ação penal em que se imputa ao recorrente a suposta prática de crime de racismo, por meio de incitação à discriminação religiosa (Lei 7.716/1989, art. 20, § 2º). No caso, sacerdote da Igreja Católica Apostólica Romana publicou livro no qual, segundo a acusação, explicitou conteúdo discriminatório a atingir a doutrina espírita. O Colegiado equacionou que, em um cenário permeado por dogmas com fundamentos emocionais, os indivíduos tendem a crer que professam sua fé dentro da religião correta e que aquela é a melhor, e essa certeza contém intrínseca hierarquização. Nesse ambiente, é necessário avaliar a observância dos limites do exercício das liberdades constitucionais. Por sua vez, não cabe ao Judiciário censurar manifestações de pensamento. Assim, eventual infelicidade de declarações e explicitações escapa do espectro de atuação estatal. Ponderou que a liberdade religiosa possui expressa proteção constitucional (CF, art. 5º, VI e VIII) e abrange o livre exercício de consciência, crença e culto. Além disso, alcança a escolha de convicções, de optar por determinada religião ou por nenhuma delas, de empreender proselitismo e de explicitar atos próprios de religiosidade. Assim, a liberdade de expressão funciona como condição de tutela efetiva da liberdade religiosa, assegurando-se a explicitação de compreensões religiosas do indivíduo e atuações conforme a crença. Caso contrário, em vez de liberdade, haveria mera indiferença religiosa. Por outro lado, a liberdade religiosa não ostenta caráter absoluto e deve ser exercitada de acordo com a delimitação constitucional, segundo o princípio da convivência das liberdades públicas. Nessa perspectiva, o repúdio ao racismo figura como um dos princípios que regem o País em suas relações internacionais (CF, art. 4º, VIII). Ademais, o tipo penal em debate decorre de mandamento de criminalização expresso no art. 5º, XLII, da CF. No caso, cumpre perquirir se as opiniões explicitadas pelo recorrente estão em conformidade com a Constituição ou se desbordam dos limites do exercício das liberdades constitucionalmente asseguradas. A Turma assinalou que a característica plural da Constituição impõe que determinados interesses, na hipótese em que colidentes, sejam contrastados a fim de alcançar a máxima efetividade de ambos. É necessário que as posições divergentes sejam mutuamente respeitadas, reclamando-se tolerância em relação ao diferente. Por sua vez, os limites de discursos religiosos não coincidem, necessariamente, com explicitações atinentes aos demais elementos normativos do tipo em questão, quais sejam, raça, cor, etnia ou procedência nacional. A mensagem religiosa não pode ser tratada exatamente da mesma forma que a não religiosa. Sob esse aspecto, diversas religiões ostentam caráter universalista, ou seja, almejam converter o maior número possível de pessoas. Em especial, o catolicismo e o cristianismo perseguem esse objetivo. Nessa medida, tolher o proselitismo indispensável à consecução das finalidades de religiões universalistas configura ataque ao núcleo essencial da liberdade de expressão religiosa. O proselitismo religioso, em diversas oportunidades, é implementado à luz de um contraste entre as mais diversas religiões. O indivíduo que busca a conversão de outrem geralmente o faz sob argumentos de hierarquização entre religiões, almejando demonstrar a superioridade de suas próprias crenças, de modo que, corriqueiramente, as religiões pretendem assumir contornos de doutrinas de primeira ordem. Esse proselitismo, portanto, ainda que acarrete incômodas comparações religiosas, não materializa, por si só, o espaço normativo dedicado à incriminação de condutas preconceituosas. Essa ação constitui não apenas desdobramento da liberdade de expressão religiosa, mas figura como núcleo essencial desse direito, de modo que negar sua prática configuraria excessiva restrição às liberdades constitucionais. Assim, eventual animosidade decorrente de observações desigualadoras não configura, necessariamente, preconceito ou discriminação. A desigualação desemboca em discriminação na hipótese em que ultrapassa, de forma cumulativa, três etapas. A primeira delas relaciona-se a um juízo cognitivo em que se reconhecem as diferenças entre os indivíduos. Na segunda, implementa-se um juízo valorativo direcionado à hierarquização. Na hipótese de discursos religiosos, a comparação entre crenças e a ocorrência de explicitações quanto à mais adequada entre elas é da essencialidade da liberdade de expressão religiosa. Por fim, a terceira fase consiste em um juízo em que se exterioriza a necessidade ou legitimidade de exploração, escravização ou eliminação do indivíduo ou grupo considerado inferior. Desse modo, não apenas a finalidade de eliminação, mas também o intuito de supressão ou redução de direitos fundamentais sob razões religiosas já configura, em si, conduta discriminatória e, nessa medida, não albergada pela Constituição e sujeita, em tese, à censura penal. Necessário, portanto, precisar o sentido de exploração e eliminação, que se relaciona à avaliação de que o suposto superior tem o dever e, ao mesmo tempo, a prerrogativa de subjugar o indivíduo considerado inferior. Por sua vez, nas hipóteses em que se reconhece caber ao pretenso superior a prestação de auxílio ao considerado inferior, verifica-se a presença somente das primeiras etapas, de modo que, nesses casos, não se cogita de conduta discriminatória apta a merecer reprimenda penal. O discurso proselitista, nessas hipóteses, associa-se ao dever de auxílio a adeptos de outras religiões, vistas como equivocadas. Objetiva-se assegurar que o outro alcance o mesmo nível moral em que o agente se vê inserido. O discurso que persegue alcançar, pela fé, adeptos de outras crenças não se qualifica intrinsecamente como discriminatório. Sendo assim, no embate entre religiões, a tolerância é medida a partir dos métodos de persuasão (e não imposição) empregados. No contexto religioso, a tentativa de convencimento pela fé, sem contornos de violência ou desrespeito à dignidade humana, está dentro das balizas da tolerância. Também descabe potencializar o proselitismo, por si, para fins de reconhecimento de realização de uma espécie de guerra santa, mantida com base em discurso odioso, tampouco para legitimar atos de violência ou de perseguição aptos a macular a dignidade humana. No caso concreto, a publicação escrita pelo recorrente, sacerdote católico, dedica-se à pregação da fé católica, e suas explicitações detêm público específico. Não se pode depreender a intenção de proferir ofensas às pessoas que seguem a doutrina espírita, mas sim de orientar a população católica da incompatibilidade verificada, segundo sua visão, entre o catolicismo e o espiritismo. Ainda que, eventualmente, os dizeres possam sinalizar certa animosidade, não há intenção de que os fiéis católicos procedam à escravização, exploração ou eliminação dos adeptos do espiritismo. A vinculação operada entre o espiritismo e características malignas cinge-se à afirmação da suposta superioridade da religião professada pelo recorrente. Não se trata de tentativa de subjugação dos adeptos do espiritismo, portanto. Assim, a explicitação de aspectos de desigualação, bem como da suposta inferioridade decorrente de aspectos religiosos não perfaz, por si, o elemento típico. É indispensável que se verifique o especial fim de supressão ou redução da dignidade do diferente. Sendo assim, a afirmação de superioridade direcionada à realização de um suposto resgate ou salvação, apesar de indiscutivelmente preconceituosa, intolerante, pedante e prepotente, encontra guarida na liberdade de expressão religiosa, e não preenche o âmbito proibitivo da norma. Vencido o ministro Luiz Fux, que não trancava a ação penal por entender não haver elementos suficientes para tanto.
RHC 134682/BA, rel. Min. Edson Fachin, julgamento em 29.11.2016. (RHC-134682)
Busca e apreensão, violação de correspondência e domicílio - 2
A Primeira Turma, em conclusão de julgamento e por maioria, desproveu recurso ordinário em “habeas corpus” em que se discutia a validade de atos realizados durante investigação pela suposta prática de falsidade documental — v. Informativo 834. No caso, procurador do Ministério Público do Trabalho teria forjado a assinatura da procuradora-chefe, em promoção formulada por si próprio. O relator do inquérito havia deferido diligência requerida pelo “Parquet” apenas em relação ao equipamento usado pelo indiciado, com a finalidade de averiguar se a promoção fora lá elaborada. Porém, ao cumprir o mandado, o procurador-chefe substituto também havia autorizado a arrecadação do computador do gabinete da chefia da Procuradoria Regional. A defesa insurgia-se contra a apreensão desse equipamento, por transbordar os limites do mandado, bem assim contra a impossibilidade de indicar assistente técnico e de formular quesitos nessa fase inquisitorial. Além disso, sustentava que se teria procedido à análise do equipamento utilizado pelo recorrente de forma indevida, porque verificada sua correspondência eletrônica lá armazenada, em violação ao art. 5º, XII, da Constituição Federal. O Colegiado entendeu que, na hipótese, o fato de ter havido a entrega espontânea dos computadores traduz peculiaridade. Além disso, não cabe falar em violação ao direito à intimidade, por se tratar de material disponibilizado, inclusive, para o serviço público. Ademais, no que diz respeito à suposta violação do sigilo de correspondência eletrônica, não houve quebra da troca de dados, mas sim acesso aos dados registrados nos computadores. Sublinhou, também, no tocante ao cerceamento de defesa por indeferimento de diligência no curso da investigação, não ser o momento próprio para invocar o exercício do contraditório e da ampla defesa. Lembrou, inclusive, que a denúncia já havia sido recebida. Enfatizou, ainda, que uma vez entregue o computador que não constava da ordem de busca e apreensão, a perícia nessa máquina foi sustada. Depois de reapreciada a decisão, foi deferido o exame do elemento de prova. Assim, no caso, não houve a produção de prova ilícita para, posteriormente, decidir-se sobre sua admissão. A prova apenas foi produzida depois de decidido sobre a licitude da colheita do equipamento. Vencido o ministro Marco Aurélio (relator), acompanhado pela ministra Rosa Weber, que provia parcialmente o recurso para anular a apreensão e a perícia feitas em computador diverso do usado pelo recorrente. Determinava, também, o desentranhamento do processo. Além disso, reconhecia a validade da perícia realizada no equipamento utilizado pelo acusado e assentava inexistir, no inquérito, direito da defesa à indicação de assistente técnico e à formulação de quesitos.
RHC 132062/RS, rel. orig. Min. Marco Aurélio, red. p/ o ac. Min. Edson Fachin, julgamento em 29.11.2016. (RHC-123062)
Aborto consentido e direitos fundamentais da mulher
A Primeira Turma, por maioria, não conheceu de “habeas corpus”, por entendê-lo incabível na espécie. Porém, concedeu a ordem de ofício em favor de pacientes presos cautelarmente em razão do suposto cometimento dos crimes descritos nos arts. 126 e 288 do Código Penal (CP) (aborto consentido e formação de quadrilha), para afastar a custódia preventiva. Assentou não estarem presentes os requisitos que legitimam a prisão cautelar (Código de Processo Penal, art. 312). Afinal, os pacientes são primários e com bons antecedentes, têm trabalho e residência fixa, têm comparecido aos atos de instrução e cumprirão pena em regime aberto, na hipótese de condenação. Reputou ser preciso conferir interpretação conforme à Constituição aos arts. 124 a 126 do CP, que tipificam o crime de aborto, para excluir do seu âmbito de incidência a interrupção voluntária da gestação efetivada no primeiro trimestre. A criminalização, nessa hipótese, viola diversos direitos fundamentais da mulher, bem como o princípio da proporcionalidade. Vencido o ministro Marco Aurélio, que concedia a ordem.
HC 124306/RJ, rel. orig. Min. Marco Aurélio, red. p/ o ac. Min. Roberto Barroso, julgamento em 29.11.2016. (HC-124306)
SEGUNDA TURMA
Prova ilícita e desentranhamento de peças processuais
A Segunda Turma negou provimento a recurso ordinário em “habeas corpus” no qual se pretendia o desentranhamento de peças processuais que fizessem referência a prova pericial obtida de forma ilícita. No caso, o paciente foi pronunciado pela prática dos crimes descritos no art. 121, § 2º, IV (por duas vezes), combinado com o art. 70 do Código Penal (CP) e com os arts. 306 e 307, “caput”, do Código de Trânsito Brasileiro, aplicando-se a regra do art. 69 do CP. Diante da ilicitude do exame pericial de alcoolemia realizado no sangue do paciente, o tribunal de origem determinou fossem riscadas quaisquer referências aos resultados do exame na denúncia, na pronúncia e no acórdão embargado. Os impetrantes alegavam que o tribunal de origem, ao reconhecer que a prova havia sido obtida por meios ilícitos, também deveria ter declarado a ilicitude e determinado o desentranhamento das peças processuais que se reportavam ao exame de alcoolemia (denúncia, sentença de pronúncia e acórdão do recurso em sentido estrito), nos termos do art. 157, § 1º, do Código de Processo Penal (CPP). Tal atitude evitaria que esses elementos influenciassem no convencimento dos juízes leigos do Tribunal do Júri. A Turma, inicialmente, indeferiu o pedido de suspensão do julgamento pelo Tribunal do Júri até a preclusão da pronúncia. Isso ocorreu em razão da existência de “habeas corpus” impetrado em favor do paciente e afetado ao Plenário (HC 132.512). Quanto ao pedido de exclusão das peças processuais, assentou que a denúncia, a pronúncia, o acórdão e as demais peças judiciais não são provas do crime. Por isso, em princípio, estão fora da regra constitucional que determina a exclusão das provas obtidas por meios ilícitos (art. 5º, LVI, da CF/1988). Asseverou, ademais, que o art. 157 do CPP, ao tratar das provas ilícitas e derivadas, não prevê a exclusão de peças processuais que a elas façam referência. Entendeu, ainda, que o tribunal de origem acolheu interpretação teleológica favorável à defesa, ao determinar que as referências ao resultado do exame fossem riscadas das peças processuais. Ponderou que as limitações ao debate em plenário, mencionadas nos arts. 478 e 479 do CPP, com redação dada pela Lei 11.689/2008, são pontuais e vêm recebendo interpretação restritiva pela Corte, bem como que a exclusão de prova ilícita não é contemplada nas normas de restrição ao debate. Em suma, a exclusão de peça que faça menções à realização da prova e ao debate quanto à validade da prova não é uma consequência óbvia da exclusão da prova. Ressaltou, por fim, que não se aplica ao caso a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que afasta o envelopamento como alternativa à desconstituição da pronúncia por excesso de linguagem. Isso porque os jurados recebem cópia da peça processual relativa à pronúncia e têm a prerrogativa de acessar a integralidade dos autos (arts. 472, parágrafo único; e 480, § 3º, do CPP). Logo, seria incompatível com o rito que a decisão de pronúncia fosse uma peça oculta (HC 123.311/PR, DJe de 14.4.2015; e RHC 122.909/SE, DJe de 9.12.2014).
RHC 137368/PR, rel. Min. Gilmar Mendes, julgamento em 29.11.2016. (RHC-137368)
Causa de diminuição da pena e quantidade de droga apreendida
A Segunda Turma concedeu em parte a ordem em "habeas corpus" no qual se pretendia a incidência da causa especial de diminuição da pena do art. 33, § 4º, da Lei 11.343/2006, com a consequente modificação do regime inicial de cumprimento e a substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de direitos. No caso, o paciente foi condenado à pena de três anos de reclusão, em regime semiaberto, pela prática do crime de tráfico de drogas, previsto no art. 33, “caput”, da Lei 11.343/2006. A impetração sustentava que a quantidade e a natureza da droga apreendida não poderiam afastar a aplicação da causa de diminuição prevista no art. 33, § 4º, da Lei 11.343/2006. Aduzia que a redução da pena passaria a ser direito subjetivo do acusado, uma vez preenchidos os requisitos do art. 33, § 4º, da Lei 11.343/2006 (entre os quais não estão contempladas a quantidade ou a qualidade do entorpecente). O Colegiado verificou que, embora o juízo de 1º grau tenha reconhecido a presença de todos os requisitos do art. 33, § 4º, da Lei 11.343/2006 (primariedade, bons antecedentes, ausência de dedicação a atividades criminosas e de integração a organização criminosa), a quantidade de entorpecente foi o único fundamento utilizado para afastar a aplicação do redutor do art. 33, § 4º, da Lei 11.343/2006. Por essa razão, entendeu, em conformidade com precedentes da Turma, que a quantidade de drogas não constitui isoladamente fundamento idôneo para negar o benefício da redução da pena.
HC 138138/SP, rel. Min. Ricardo Lewandowski, julgamento em 29.11.2016. (HC-138138)